TANTAS-FOLHAS

Aborto: um depoimento forte e necessário


Estocolmo, 21 de janeiro de 2021.

Maria!

Enquanto o mundo ferve e desaba entre terremoto na Indonésia e congelamento com temperaturas negativas no Norte da Europa, entre a perversidade e desespero do Trump em seus últimos minutos de fama e a desolação e morte cruel de indefesos por asfixia patrocinada pelo genocida Bolsonaro, assim como pela incompetência do social-cristão Wilson Lima, quero que conversemos sobre o aborto e a urgência da sua legalização e descriminalização. Tema tão espinhoso e que ainda causa tantos desconfortos e controvérsias. Há quem diga que os fatos citados acima e tantos outros são muito mais urgentes, mas como não ver urgência em algo que diz respeito aos nossos corpos e liberdades? Somos mulheres. Como disse uma das minhas poetas favoritas: um útero é do tamanho de um punho. 

Essa semana, estive explicando para minha filha Alma o que é um útero. De forma simples, disse a ela que todas nós nascidas biologicamente mulheres temos isso dentro da nossa barriga e que chamamos de útero. Aí ela me perguntou se o sangue que ela já viu saindo de mim algumas vezes vinha de lá. Eu disse sim e completei que é lá que os bebês crescem. E que cada uma de nós pode decidir se quer ou não ter um bebê. Ela balançou a cabeça, virou pro lado e começou a desenhar. Achei simbólico ela ter desenhado uma flor. Me faz acreditar que uma semente foi plantada ali. 

Curiosamente, quando me vem à cabeça que minha vontade inicial ao me descobrir grávida foi de abortar, ela não se choca com a não-concretude dessa vontade, que toma forma nesse pequeno ser que insiste em atropelar tudo o que vê pela frente e que atende pelo nome de Alma. Consigo separar as duas coisas. Ambas representam, cada uma a sua maneira, a minha liberdade de escolha. Algo que serei eternamente grata à Suécia por me proporcionar o que deveria ser nosso direito inalienável, uma cláusula pétrea da nossa Constituição do ser-mulher. 

Infelizmente, sabemos que isso não acontece em muitos lugares, entre eles, o Brasil. Com a vitória de nuestras hermanas na Argentina, somente Cuba, Uruguay, as Guianas e Puerto Rico possuem o aborto legalizado. Quantas mulheres não morrem ou sofrem por não terem acesso ao abortamento legal em todo o restante da América Latina, em especial no Brasil? 

Nunca te contei em detalhes, sempre sinto que quando conversamos sobre esse assunto, nossos sentimentos e visões distintas acabam atropelando a nossa razão e optamos por deixar esses espinhos de lado. Mas quero te contar hoje que quando descobri que estava grávida, a minha primeira reação foi não querer seguir com a gravidez, por automaticamente ter a certeza de que não estava preparada para ser mãe, mesmo aos 35 anos, e ter a certeza ainda maior de que não caberia uma criança em minha vida naquele momento. Inclusive, três dias após receber o choque da notícia da gravidez, eu partia para Gotemburgo onde trabalharia durante os próximos três meses, trabalho esse que fazia parte da vida nômade de freelancer que eu levava na época. 

Aborto

No Posto de Saúde, ao receber a notícia da enfermeira de que sim, o resultado era positivo, eu disse a ela, num supetão, que não queria seguir com a gravidez. Ela, muito tranquila e receptiva, me disse: claro, eu entendo. Aguarde um momento. Quando ela voltou, me estendeu um pedaço de papel onde continha uma lista com nomes, números e endereços de clínicas espalhadas por Estocolmo para que eu pudesse escolher. Eu agradeci e saí de lá num misto de alívio e deslumbre por aquele acolhimento que acabava de se tecer à minha frente, sem nenhum pudor e constrangimento, muito pelo contrário. Mais uma vez, de forma muito simples e respeitosa, o meu direito de escolha estava sendo preservado ali na minha frente, ou melhor, na minha mão. 

No dia seguinte, liguei para uma clínica no centro de Estocolmo, chamada Ultra Gyn, Ginecologia e Ultra-som. Com a mesma calma que a primeira enfermeira havia me atendido no posto de saúde próximo à minha casa, essa outra mulher a quem expliquei minha situação e disse que queria agendar um aborto, me acolheu fazendo perguntas práticas sobre minha saúde. Após o pequeno interrogatório, o meu aborto foi agendado para o dia 16 de novembro de 2015. Na véspera do dia 16, comecei a sentir que algo se passava dentro de mim. Um desconforto, uma certa angústia, uma pulga atrás da orelha me pinicava. Quando a noite caiu, percebi que eu alternava entre minha certeza absoluta em não querer me tornar mãe e a dúvida. Dúvida essa que me abraçou e acompanhou até a manhã seguinte, quando pisei na clínica às 09:00 da manhã. 

 

Uma possível maternidade me assombrava.

 

Ao entrar no consultório, a médica ginecologista me pediu para sentar e ao me perguntar como eu me sentia, me escapuliu rapidamente que não me sentia bem. Ela então me pediu para contar o que sentia. Sem titubear, disse a ela que tinha dúvidas. E medo. Finalmente, havia conseguido personificar aquilo que eu desconfiava, mas temia sentir: o maldito medo. Não o medo do aborto, mas sim o da maternidade. E completei dizendo que não mais sabia o que queria fazer, e se queria prosseguir com o aborto. Uma possível maternidade me assombrava. Eu, que sempre dizia a mim mesma que não me via mãe. Nunca havia engravidado até então e nem sequer passava pela minha cabeça algo parecido. But shit happens como sabemos, assim como abusos e violências também. No meu caso, eu tinha escolha. Para muitas mulheres, escolhas não existem. A não ser as ilegais. 

Após me ouvir, a médica disse que não havia problema algum e que então me encaminharia para a enfermeira-psicóloga da clínica. Aqui é relevante te contar que essa clínica não é uma clínica voltada exclusivamente para a realização de abortos e sim voltada para as mulheres e todas as suas possíveis questões físicas e emocionais, da ginecologia à psicologia, do pré-natal ao pós-parto. Quando entrei na sala da enfermeira-psicóloga, ela pegou em minha mão e olhou nos meus olhos, ao mesmo tempo em que me oferecia um copo de água. Disse: pode ficar tranquila, seja como for vai ficar tudo bem. Foi aí que não consegui segurar mais e desabei em choro, um choro que saía na intensidade dos mil nós na garganta que as lágrimas empurravam para fora.

Com muita paciência e, mais uma vez, acolhimento (repito essa palavra, ou melhor, esse lugar onde o ato de acolher se abriu, pois foi exatamente ele quem virou a minha chave), ela me convidou a fazer uma exercício de reflexão. Disse que eu deveria ir para casa e ao chegar lá pegar papel e caneta e, literalmente, fazer uma lista com os prós e contras de ambas escolhas, ou seja, o  seguir ou não com a gravidez, o fazer ou não o aborto, o ter ou não ter um bebê, se tornar ou não uma mãe. 

Karin é o nome dela. Karin me enviou para casa. Me mandou pegar caneta e papel. Listar o que sentia. Me convidou a dar corpo aos meus medos. Me acolheu. Me deu o seu telefone e me pediu para ligar para ela quando tivesse terminado de fazer o meu exercício e tomar a minha decisão. Se eu quisesse conversar, ela estaria ali, disponível. Karin me deu um envelope. Disse que, dependendo da minha decisão, eu deveria abri-lo e seguir as instruções que constavam ali dentro. Karin me abraçou e mais uma vez repetiu: seja como for, vai ficar tudo bem. Estamos aqui.

Como sabemos hoje, cinco anos depois, Alma é o nome da minha decisão. Decisão essa que tenho muito orgulho e ainda faz me emocionar muito ao lembrar de como o acolhimento e o respeito de todas essas mulheres pelas quais passei nesse pequeno processo, até chegar no lugar que a minha decisão me levou, foram fundamentais para que eu a tomasse.

 

Todo esse processo pelo qual passei foi gratuito, não me custou um centavo sequer.

 

A Suécia legalizou o aborto em 1975. Há quase 50 anos! E como sabemos, nenhuma mudança estrutural cai do céu. Depois de muita organização, movimentação e pressão popular das mulheres, eis que a lei do aborto foi aprovada. dando a todas mulheres o direito ao aborto gratuito até a 18ª semana de gravidez. O direito ao aborto gratuito se aplica independentemente da razão pela qual a mulher deseja fazer um aborto, e é sempre a própria mulher quem decide. Esqueci de mencionar acima, quando narrava a minha experiência, que todo esse processo pelo qual passei foi gratuito, não me custou um centavo sequer. Caso tivesse optado por realizar o procedimento, ele me custaria o valor de uma consulta médica regular, o que equivale a 150 reais. O direito ao aborto gratuito se aplica também a mulheres estrangeiras exiladas ou que não possuem documentação. Ou seja, caso uma mulher se encontre em uma situação ilegal, o seu direito ao aborto é mantido intacto.

Estima-se que entre 35.000 e 38.000 abortos são realizados anualmente na Suécia. Em 2019, foram realizados pouco mais de 36.000 abortos. Para você ter uma ideia, esse número corresponde a 19 abortos por 1.000 mulheres entre 15 e 44 anos, sendo que a maioria desses abortos é realizada no início da gravidez. Em 2019, 85% dos abortos foram realizados antes da nona semana e 59% antes da sétima semana. Entre as mulheres mais jovens, os abortos na adolescência diminuíram nos últimos dez anos. Em 2019, quase 10 abortos foram realizados por 1.000 na faixa etária entre 15 e 19 anos. Todos esses dados estão disponíveis no site do Conselho Nacional de Saúde da Suécia e são atualizados anualmente. 

aborto

Aborto aqui não é tabu e muito menos algo vexatório. É culturalmente aceito e respeitado em uma sociedade que ensina suas crianças ainda nas creches a levantar a mão e dizer STOPP, marcando que não querem ser tocadas e demarcando o limite dos seus corpos. Que o corpo é delas e somente elas podem decidir quem vai tocá-las. Alma com dois anos já havia aprendido e internalizado a frase: STOPP, MIN KROPP (PARE, MEU CORPO). 

 

A fórmula para uma sociedade mais igualitária só é possível quando mulheres têm a liberdade de decidir sobre os seus corpos.

 

E porque te conto toda essa história em detalhes nesse espaço do nosso tempo? Porque apesar de discordarmos veementemente sobre a questão, queria te convidar para refletirmos juntas. Em outras palavras, sabemos que mulheres abortam e sempre abortarão. A diferença está na forma que esses abortos são realizados e por isso milhares de mulheres continuam morrendo no Brasil e no mundo em consequência de abortos ilegais. Os números na Suécia comprovam que a legalização do aborto não é sinônimo de um aumento exponencial no número de abortos, que mulheres não usam o aborto como método contraceptivo e que a fórmula para uma sociedade mais igualitária só é possível quando mulheres têm a liberdade de decidir sobre os seus corpos. Essa condição traz em si, também, uma postura política. Poder escolher como, quando, e o que fazer com o nosso próprio corpo, nos dá asas e tempo para que possamos nos dedicar e engajar em outras esferas da sociedade na qual vivemos. 

No país patriarcal de coronéis, cujo presidente afirmou recentemente que o que depender dele e do seu governo, o aborto jamais será aprovado em solo brasileiro, mas que permite e alimenta comportamentos machistas e misóginos em uma sociedade que mata uma mulher a cada sete horas, onde meninas de 10 anos viram objetos na mão da irracionalidade e brutalidade alheias, onde abusos e violências de meninas e mulheres se dão em sua maioria bem no seio da moral de suas famílias, a legalização do aborto e sua descriminalização torna-se urgente e deveria ser pauta número um do debate público, uma questão de sobrevivência. De saúde pública. De poder ser. De tornar-se mulher. Para as mulheres nascidas com útero, o tornar-se mulher se faz na emancipação de seus úteros.

Lembra do envelope que a Karin me deu? Seu conteúdo me acompanha diariamente. O tenho aqui aberto, enquadrado como lembrete sobre a importância do poder da livre escolha. A minha escolha. Tive a opção. E por motivos que só eu sei, optei pela liberdade com forma de Alma. 

Aborto

Reflitamos juntas, minha amiga. 

Um beijo grande,

Clarice 

 


Fotos: Clarice Goulart .

 

Clarice Goulart

Mineira, radicada desde 2008 em Estocolmo, na Suécia. É graduada em Letras pela UFMG e pós-graduada em Estudos da Tradução pela Universidade de Estocolmo, onde também cursou Cinema e TV. Produtora cultural freelancer e programadora de festivais de cinema, possui currículo extenso em colaboração com os principais festivais de cinema da Suécia, entre eles, Göteborg Film Festival, Bergman Week e Tempo Documentary Festival. Entre 2011-2016 foi produtora do BrasilCine, única mostra de cinema brasileiro na Escandinávia. Atualmente, é produtora e programadora do Panoramica - Stockholm’s Latin American Film Festival e coordenadora do Departamento de Drama do SVT, canal sueco de televisão pública. Nos projetos em andamento, há parcerias entre Brasil e Suécia, como o documentário Fico te devendo uma carta sobre o Brasil, de Carol Benjamin.

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