TANTAS-FOLHAS
Quarentena

O show de um Eu cansado: algumas reflexões sobre leituras e conjunturas em tempos de quarentena


Pandemia
Os Amantes (1928), René Magritte.

Neste fim de ano, tirei um tempo para organizar algumas ideias. Esta pandemia, que parece uma estranha suspensão de tempos (do fazer, do lazer, dos afetos, dos trabalhos…), implicou para todos nós um novo movimento, onde fomos, de certa forma, convocados a nos encontrar em diferentes pontos de reflexão, angústia e transformação.

Interessante notar que, após quase um ano nesta estranha suspensão, muito foi pensado e problematizado no âmbito da produção intelectual e profissional. Lembro-me que nas primeiras semanas, quando assistíamos, pelos veículos de comunicação, a primeira onda crítica de perdas na Europa e suas ruas vazias, muitos apontaram que aquele seria um momento para se repensar os rumos e velocidades que o mundo capitalista estava tomando. Era a chance que a civilização tinha para pensar sobre seus atos e seu relacionamento com o Planeta. 

A breve suspensão deu uma espécie de respiro à natureza. Vimos um pouco de céu azul na acinzentada China. Golfinhos ocuparam os fétidos canais de Veneza. Cabras montanhesas caminhavam tranquilas pelas ruas do País de Gales. Em nossos apartamentos, confinados, tivemos tempo para pensar em coisas, reinventar e descobrir outras habilidades. No início, foram as tentativas e os aprendizados culinários. Outros começaram a explorar as redes sociais e a produção de vídeos como estratégias de diálogo – “mensagens em garrafas virtuais” visando construir pontes com outras solitudes. Alguns, para afagar o tédio e a solidão, de si e dos próximos, faziam performances nas sacadas de suas casas. Corais foram formados, apresentações de danças e coreografias em lotes vazios eram realizadas para uma plateia em clausura.

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A Queda (1929), René Magritte.

Foram formas de criar estratégias de afeto. As tecnologias auxiliaram a manter um certo grau de sanidade (o que acabou promovendo uma estafa mental, mas falarei sobre isso adiante). Em meio a reuniões com amigos, familiares, festas solitárias virtuais, as telas assumiram protagonismos. Brindávamos em meio à confusão das janelas dos Zoom, Jitsi, Google meet. As falas se atropelam, as janelas congelam, os fundos de tela divertidos tentam criar um clima de informalidade. Algo próximo a tudo isso foi a tônica durante os primeiros dias, quando achávamos que a ideia de quarentena iria durar, no máximo, “quarenta dias”.

No início de toda essa “novidade”, não foram poucos os que tentaram entender, no calor do momento, o que se passava na civilização. Filósofos, pensadores, sociólogos, antropólogos produziram, “a toque de caixa”, reflexões sobre o contexto. Lembro que os primeiros que li foram disponibilizados em uma compilação de breves ensaios sobre a pandemia, em meados de março de 2020, chamado Sopa de Wuhan [1]. Nesta publicação havia textos dos mais variados pensadores contemporâneos: Slavoj Zizek, Judith Butler, Paul Preciado, Giorgio Agamben, David Harvey, dentre outros. 

Como toda produção realizada no calor do momento, tivemos reflexões que buscavam esclarecer questões sobre as implicações do impacto pandêmico global. Recomendo a leitura, principalmente depois de quase um ano em meio a esta situação, para revisitar os primeiros olhares e colocar toda aquela questão em nova perspectiva. Interessante perceber como cada um analisou e construiu possíveis caminhos sobre os futuros impactos comportamentais, econômicos, culturais desta tamanha pausa forçada. 

Zizek alertava sobre o risco de que, com a disseminação contínua do vírus, outras epidemias (estas, agora, ideológicas) também ganhariam espaço no campo do discurso. Teorias da conspiração, explosões de preconceito e racismo e as fake news encontrariam um sistema imunológico social fragilizado, o que necessitaria uma contra força: um esforço geral para se repensar nossa sociedade para além dos Estados-Nação. Zizek aposta na necessidade de nascer uma sociedade alternativa alicerçada em novas formas de solidariedade e cooperação global, ou como defende: uma reinvenção do comunismo com base na confiança nas pessoas e na ciência. Lembro deste mesmo otimismo de Zizek quando ele discursou na praça onde estavam os representantes dos 99%, em 2011, em Wall Street, conhecido como Occupy. Zizek acreditava que, depois das revoluções coloridas iniciadas no mundo árabe, o levante popular de indignação com o capitalismo, no coração do sistema, provocaria mudanças substanciais em nossas formas de vida. Porém, a coisa foi toda incorporada e comercializada como novos emblemas de rebeldia jovem e de outras alteridades.  

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Este Año Sí… | ilustração para Revista Dinheiro, Ed. 388, Randy Mora. Via flickr.

Outro ponto de vista, acolhido de forma bastante polêmica, foi a defesa, feita pelo filósofo italiano Giorgio Agamben, de que a pandemia seria uma invenção cujo propósito era aumentar o controle dos aparelhos de Estado sobre as populações (pensando sobre o caso italiano), em mantê-las domesticadas, disciplinadas, cativas. Agamben se ampara nos primeiros estudos e levantamentos do centro de saúde italiano sobre a baixa letalidade do vírus. Neste sentido, segundo ele, não haveria justificativa epidemiológica para que governos tomassem medidas tão próximas de um novo “estado de exceção” global. Agamben aponta no livro, publicado no Brasil em 2020, em versão digital, pela editora Boitempo, Reflexões sobre a peste, que:

Dois fatores podem contribuir para explicar um comportamento tão desproporcional. Primeiro, manifesta-se mais uma vez a crescente tendência de usar o estado de exceção como paradigma normal de governo. O decreto-lei imediatamente aprovado pelo governo “por razões de higiene e segurança pública” se mostra de fato uma verdadeira militarização “dos municípios e das áreas em que resulta positiva pelo menos uma pessoa para a qual não se conhece a fonte de transmissão ou, de toda forma, nos quais existe um caso não atribuível a uma pessoa proveniente de uma área já afetada pelo contágio do vírus”. (AGAMBEN, 2020)

A perspectiva — um tanto quanto descrente – do filósofo, provocou ruídos em certos cenários acadêmicos, intelectuais e em alguns veículos da grande mídia. O gesto de pensar a dimensão da pandemia como substituta a um espectro de terrorismo latente que mobiliza ações disciplinares governamentais em direção a “negociar” com a população, em estado coletivo de pânico, a perda voluntária de suas liberdades individuais e novas formas de controle em prol de uma suposta segurança.  

O pensador francês Jean-Luc Nancy escreve ao amigo um “artigo-resposta” onde, de forma irônica, critica a visão um tanto quanto simplista do autor italiano, ao igualar a dimensão viral da Covid-19 a mais uma gripe e que, conforme a sua versão mais antiga, não demandaria tamanho estardalhaço mundial. Nancy reconhece sua perspicácia histórico-analítica, mas questiona a sugestão de resistência de Agamben.

Uma outra reflexão —  um pouco mais centrada – que teve destaque foi promovida pelas análises do historiador israelense Yuval Noah Harari. Na sua percepção, a mobilização global provocada pela epidemia não terá implicações apenas nas formas como organizamos os sistemas de saúde e políticas públicas, mas também irá provocar alterações nas formas como são estruturados os parâmetros econômicos, políticos e culturais no futuro. Essas novas estruturas levantam reflexões sobre a sociedade de controle e vigilância, o que implicaria confronto a certos dilemas éticos importantes. 

Na compilação de artigos e entrevistas publicado em livro pela Companhia das Letras em 2020, intitulado Notas sobre a Pandemia – e breves lições para o mundo pós-coronavirus, Harari alerta que em momentos de convulsão social, o maior risco enfrentado não é o vírus, mas os demônios interiores da humanidade: o ódio, a ganância e a ignorância. Podemos reagir à crise propagando ódio (como culpar os estrangeiros e minorias pela pandemia); podemos reagir à crise estimulando a ganância (explorando a crise como oportunidade de aumento de ganhos e concentração de renda pelos mais ricos); e podemos reagir à crise disseminando ignorância (espalhando e acreditando em teorias da conspiração).

Para Harari, não há necessidade de se alimentar esses três pilares. Podemos reagir no sentido de gerar compaixão, generosidade e sabedoria. Valorizar a ciência, compartilhar em vez de acumular e cooperar com o próximo, não o vendo como culpado pela pandemia – o que vemos quando alguns países culpam os chineses como propagadores do vírus.

A grande parte dessas primeiras análises ainda colocava um protagonismo na sociedade, e na humanidade como um todo, no processo de autoconhecimento e transformação. Conforme o tempo de suspensão das rotinas foi sendo estendido, percebeu-se que certas apostas e novas posturas, como sempre acontece, foram incorporadas pelo sistema. Afinal, a roda de produção não pode parar por tanto tempo. As autoformas de trabalho ganharam força e disseminação em meio ao isolamento forçado. Termos como home-office, teletrabalho, ensino remoto, cursos on-line, palestras, webinars, startups de inovação digital e outras ferramentas foram se fazendo cada vez mais robustas ao longo dos meses. Em meio ao caos de aulas suspensas, professores precisando “se virar” com telas, programas, salas virtuais, angústias de seus alunos, reuniões domésticas de trabalho em meio aos ruídos da vizinhança e às demandas dos filhos sem aula em casa, soluções milagrosas trazidas por “especialistas de ocasião” para o campo da educação e as mais infinitas estratégias.

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Até o Wireless (2011), Randy Mora. ilustração para The Quartely Magazine (UK). Via flickr.

Assim, vendo todo esse cenário e o impacto em alguns colegas educadores, acabei retomando algumas leituras anteriores sobre essas transformações sociais, principalmente no campo dos modos de trabalho, e eis que revisitei publicações anteriores que me ajudam a pensar um pouco mais sobre alguns aspectos. 

Para entender um pouco sobre como chegamos até aqui, encontrei provocações interessantes em dois autores, o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han e a ensaísta argentina Paula Sibilia. Han traz duas perspectivas interessantes de análise, bastante provocativas, da sociedade contemporânea. Sibilia nos ajuda a pensar a dimensão da intimidade na passagem do século XX para o XXI, onde um conjunto de novos hábitos assumem um protagonismo, modulando corpos, mentes, subjetividades em meio à proliferação, que não começou hoje, das exposições pessoais nas redes sociais.

Da sociedade da transparência…

Um dos principais pontos levantados pelo filósofo sul-coreano em dois ensaios que analisam os caminhos da sociedade contemporânea, a sociedade da transparência e a sociedade do cansaço, é a dimensão que uma perspectiva de positividade, em afastamento de uma dimensão tradicional de negatividade, vai ganhando força dentro da sociedade atual. A Positividade seria aqui entendida como um processo de certa imposição, e disposição, da sociedade em submeter-se a certas modulações de comportamento frente uma constante abertura e horizontalidade das funções pragmáticas, sejam elas sociais, econômicas, subjetivas. A dimensão de negatividade estaria alinhada com as singularidades, o opaco, os desejos.  

Em A sociedade da transparência, Han aponta que a ideia de transparência na contemporaneidade está bastante alicerçada na ideia da liberdade de informação como exigência e valor inegociável atualmente. E, neste sentido, haveria um processo de desconstrução de uma sociedade da negatividade em direção da valorização da positividade.

Esses processos vão tornando as coisas transparentes à medida que são eliminados de si toda e qualquer negatividade, quando se tornam rasas e planas, quando se encaixam sem qualquer resistência ao curso raso do capital, da comunicação e da informação. 

 

Na sociedade expositiva da transparência, cada sujeito é seu próprio objeto-propaganda, tudo se mensura em seu valor expositivo. Como Han aponta, a sociedade exposta é uma sociedade pornográfica. Tudo está voltado para fora, para a exposição. E essa absolutização do valor expositivo das coisas e pessoas se expressa como tirania da visibilidade. A visibilidade é tudo o que a sociedade do espetáculo aponta. O problemático para Han não é o aumento das imagens em si, mas a coação icônica para tornar-se imagem. Tudo deve tornar-se visível.

 

Uma outra dimensão da transparência estaria localizada na disputa referente à instância do tempo. Para Han, um tempo transparente é um tempo sem destino e sem evento. É o ápice do movimento sem sentido, onde há uma sobrecarga de imagens e representações límpidas e superexpostas. As imagens são tornadas transparentes e despojadas de qualquer espécie de natureza, coreografia, cenografia. Toda uma suposta profundidade hermenêutica, todo o sentido possível acabam por tornar-se pornográficos, explícitos. Em cumprimento ao status de informação, acabamos por nos integrar a uma dimensão onde não há mediação, apenas um contato imediato entre imagem e olho, onde o sistema social submete todos os seus processos a uma coação por transparência que nivela o próprio ser humano a um elemento funcional de um sistema, que é, por si, violento. É a dimensão de negatividade, a ausência de uma transparência interpessoal que mantêm vivas as relações.

Mas o que vemos cada vez mais nas transformações das relações e formas de trabalho que estamos sofrendo no atual contexto de pandemia exalta essa dimensão de uma sociedade positiva que repudia qualquer sentimento de negatividade. Em prol de uma lógica de abertura, desempenho, velocidade e produtividade, vamos negligenciando as formas de lidar com o sofrimento e a dor. Em meio à velocidade desse “novo normal”, esquecemos como dar forma às singularidades da negatividade. 

Na sociedade expositiva da transparência, cada sujeito é seu próprio objeto-propaganda, tudo se mensura em seu valor expositivo. Como Han aponta, a sociedade exposta é uma sociedade pornográfica. Tudo está voltado para fora, para a exposição. E essa absolutização do valor expositivo das coisas e pessoas se expressa como tirania da visibilidade. A visibilidade é tudo o que a sociedade do espetáculo aponta. O problemático para Han não é o aumento das imagens em si, mas a coação icônica para tornar-se imagem. Tudo deve tornar-se visível.

Han coloca uma provocação interessante sobre o comportamento dos corpos em meio a essa coação para tornar-se imagem, assumir-se protagonista. Há um quê de obsceno que ronda esta sociedade da transparência, que assume as características de uma sociedade da aceleração. Essa dimensão obscena da transparência é um corpo sem referência, que não está direcionado, que não está em ação ou em situação. Um corpo torna-se obsceno quando é privado de toda narratividade, de todo direcionamento, de todo sentido. O obsceno é o fluxo que, em seu puro movimento, se coloca em aceleração por causa de si mesmo, é um efeito de manada, irracional, um fluxo sem sentido. Essa aceleração apaga os tempos rituais, suspensões contemplativas… esses tempos que não podem ser capturados e processados pela lógica da aceleração de forma homogênea. A igualdade é a condição imperativa de possibilidade da aceleração. Já a negatividade não apenas cunha experiência, como também o conhecimento subjetivo das suspensões particulares, das dimensões de contemplação.

É interessante pensar nas imagens resgatadas pelo filósofo sul-coreano sobre a instância da intimidade, dos espaços privados e públicos enquanto campos de performance. Nisso ele conta uma história de que, no século XVIII, as relações interpessoais eram performadas nas ruas e em diferentes espaços de interação. Algo como um teatro-mundo, que era entendido como o espaço público, algo semelhante a um palco. Nele, a distância cênica impedia o contato imediato entre corpos e almas.

O teatral seria o contraposto ao táctil, pois através de formas e sinais rituais, comunica-se aquilo que pesa sobre a alma.  Na modernidade, renuncia-se cada vez mais à distância teatral em favor da intimidade. Hoje o mundo não é um teatro no qual ações e sentimentos são representados e lidos, mas um mercado onde se expõem, vendem e consomem intimidades. Fazendo uma analogia, o teatro seria o lugar da representação. O mercado, o local da exposição. No lugar do caráter público, entra a publicização da pessoa.

O público se transforma em espaço de exposição, afastando-se cada vez mais do espaço do agir comum. E, neste sentido, a sociedade da transparência é uma sociedade da informação. A informação está privada de qualquer negatividade, é uma linguagem positivada.

No meio das webaulas, palestras online e cursos de capacitação, somos lançados à instância de produtores de conteúdo e de corrida por ressignificação pessoal. Assumimos outras performances. Mostramos nossas caras, nossas casas, construímos outras relações. Estreitamos intimidades em direção a uma escala de produtividade. 

E nessa postura de constante exibição, aspectos caros como privacidade são diluídos em detrimento da positividade e da troca voluntária do foro íntimo enquanto moeda de troca da informação compartilhada nas múltiplas redes sociais. É necessário se exibir, colocar em disponibilidade sua individualidade em prol da transparência, que também assume um papel de controle e vigilância. 

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Guia de memória do observador (2012), Randy Mora. Série de ilustrações para edição especial do The Guardian. Via flickr.

Se antes tínhamos uma ideia de sociedade disciplinar bastante alicerçada no pensamento de Michel Foucault, na sociedade de controle do século XXI, o panóptico digital é perspectivístico, na medida em que não é mais vigiado por um centro. A distinção entre centro e periferia (fundamental para o conceito de panóptico de Jeremy Bentham), se perdeu. Hoje, a especificidade do panóptico digital é que seus habitantes digitais estão ligados em rede e tem intensiva comunicação entre si.

O que assegura isso é a transparência, e não o tradicional isolamento para a vigilância como proposta por Bentham. A sociedade da transparência é uma sociedade da desconfiança e da suspeita que, em virtude do desaparecimento da confiança, agarra-se ao controle. Algo que aponta precisamente para o fato de que o fundamento moral da sociedade se tornou frágil, que os valores morais da honestidade e sinceridade estão perdendo cada vez mais importância.

 

…a transparência clama por um auto-show…

 

Toda essa dimensão da exposição toca em questões muito íntimas sobre como se recolocar no campo subjetivo dos meios de produção em período de suspensão. Outra leitura que me mobiliza neste sentido foi a obra de Paula Sibilia, O show do eu: Intimidade como espetáculo. Nele, a autora já começa com uma reflexão-provocação retirada da obra Ecce Homo de Nietzsche: como alguém se torna o que é?

Sibilia apresenta um vasto levantamento a respeito das intimidades, fortemente alicerçado em aspectos históricos da literatura, e como as mídias sociais transformaram nossa relação com a produção literária, as dimensões íntimas dos diários, até a exibição das narrativas pessoais nas redes sociais. A exibição da intimidade, na cultura globalizada do século XIX, nos romances e diários íntimos, assume uma atmosfera atual que estimula a hipertrofia do eu até o paroxismo, que enaltece e premia o desejo de ser diferente, de querer sempre mais.

No processo de levantamento dos comportamentos de usuários e da explosão das redes sociais no início do século XXI, Sibilia recorda o caso da edição anual especial da revista norte-americana TIME, de 2006, que elegeu como personalidade do ano Você. A capa da edição que é lançada ao fim de todos os anos apresentava em sua capa um papel laminado, emulando um espelho, onde o leitor poderia ver sua imagem refletida. Isso reflete certa inflexão narcisista que surgia naquele tempo.

Uma euforia da personalidade e das transformações artísticas, políticas, econômicas e culturais que, naquele movimento de nova exposição da intimidade provocaria com a proliferação das redes sociais, com um aumento massivo dos usuários da internet, principalmente na centralidade do capitalismo e suas irradiações. A expansão da internet contribuiu para um período de explosão de produtividade e inovação, redes sociais digitais, cibercultura, inteligência coletiva, reorganização “rizomática” da sociedade.

A possibilidade de se expressar para uma esfera global exacerbou grandes ambições e a promoção do “você e eu” dentro dos novos circuitos digitais. Glorifica-se a menor das pequenezas, enquanto parece buscar-se a maior das grandezas. A proliferação de blogs e diários íntimos na primeira fase de expansão das redes sociais possibilitou o surgimento do que Sibilia chama de extimidade, que é a exteriorização intencional do foro íntimo a uma massa de pessoas com quem não se tem intimidade. Tamanha abertura também coloca em jogo a análise de uma dimensão crítica sobre a captura desta nova manifestação, esta nova cibercultura pelo mercado e seus balizadores. Como aponta Suely Rolnik, citada por Sibilia, é importante ter em cena que a instância da invenção e subversão é de certa maneira desativada, pois a criatividade tem se convertido no combustível de luxo do capitalismo contemporâneo, seu protoplasma. O que poderia ser considerado como possibilidade de inventividade acaba se transformando em consumo da metamorfose digital devida à transformação dos modos de comunicação e das redes sociais.

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O espelho falso (1928), René Magritte.

As possibilidades abertas pelas novas formas de visibilidade e conectividade sem pausa lançam novos modos de estar no mundo. Combinação do “faça você mesmo” com “mostre-se como for” atua numa nova ruptura político, social, cultural e econômica, que implica na transformação e surgimento de diferentes tipos de corpos, especialmente em plataformas como youtube e instagram. Neles não são expostos os nossos esgotamentos em prol da vida virtual. Há uma modulação da performance, de comportamentos e hábitos de consumo. Uma “nova cultura”, onde os usuários (agora vistos como potenciais clientes) viram o principal ativo de empresas e produtos.

Para Sibilia há um novo espírito de época: uma atmosfera sociocultural que nos abrange, que torna possível novas concessões de sentido. Esse novo clima de época que hoje nos envolve parece impulsionar um conjunto de transformações que atingem, inclusive, a própria definição de você e de eu. A rede mundial se torna um laboratório de experimentação de novas subjetividades e relacionamentos. Abusamos do uso confessional da internet, onde o eu assume uma dimensão de “ficção gramatical” com a expansão de narrativas autobiográficas, que desperta uma espécie de fome de realidade e do consumo de vidas alheias e do comum. 

Outra interessante referência trazida por Sibilia retoma parte da reflexão do filósofo alemão Walter Benjamin, ao analisar que a escrita de si atual ainda parece exalar uma potência aurática sempre latente, embora essa qualidade não resida na consistência dos objetos, mas em sua referência autoral. Os acontecimentos relatados em blogs e vídeos pessoais são tidos como singulares e verdadeiros, porque se supõe que são experiências íntimas de um indivíduo real: o autor, narrador e personagem principal da história.

Em meio a essa voracidade industrialista, teríamos atropelado as condições que permitiam a narratividade no mundo pré-moderno. Acabamos por nos encontrar em um universo arrasado no frenesi das novidades com a enxurrada de dados que, em sua rapidez incessante, não se deixam digerir pela memória nem recriar lembrança. Toda essa agitação teria suscitado uma perda das possibilidades de refletir sobre o mundo, bem como um inevitável distanciamento com relação às próprias vivências e uma impossibilidade de transformá-las em experiência. Nossa funcionalidade multitarefa vai se desenvolvendo junto com a capacidade de nossos computadores, e em algum momento o esgotamento acaba por se estabelecer.

Em tempos nos quais impera um fluxo acelerado, a sedução (adaptada como necessidade de auto exposição), não surpreende que os sujeitos contemporâneos adaptem os principais eventos de suas vidas às exigências da câmera. A espetacularização da vida cotidiana tornou-se habitual. Essa persona assumida da era digital acaba por nutrir uma cultura do individualismo, uma “singularidade do eu” que a cada vez se torna mais atravessada pelos ditames identitários do mercado. Um risco cada vez mais tirânico da intimidade. 

Cultuado e cultuado sem cessar, o Eu atual não demanda apenas atenção e cuidados; além disso, deve ser exposto da forma mais atraente possível para convocar sedentos olhares e conquistar todos os aplausos possíveis (SIBILIA, 2016, p.103)

Para Benjamin, o vidro é o inimigo do mistério. Tudo está exposto, não há mais a dimensão do privado, da privacidade. Tudo que se tem é a exposição. Nesse movimento, uma nova economia da sociedade do espetáculo demanda um desligamento geral do ter em parecer. 

 

…um Show do Eu que alimenta uma sociedade do cansaço

 

Em A Sociedade do cansaço, Byung-Chul Han destrincha aquilo que seria a principal patologia do século XXI: a patologia neuronal, que alimenta comportamentos como depressão, déficit de atenção, Burnout, TDAH e demais sintomas que adentram nossa realidade. Mas a dimensão dessas patologias sociais não é exclusividade dos tempos atuais. No século passado, por exemplo, a principal patologia vigente era a imunológica. Havia um esforço claro de divisão entre o dentro e fora, entre amigo e inimigo, entre próprio e estranho. O objeto da defesa imunológica era a estranheza como tal, mesmo que esse estranho não tenha nenhuma intenção hostil. Fazendo um paralelo à dimensão biológica de imunização que visa combater o fator que adoece um corpo, Han aponta que a dimensão imunológica social implica um afastamento da sociedade e da organização das defesas imunológicas no sentido de apagar alteridades e estranhezas. Vale lembrar que alteridade é a categoria fundamental da imunologia.

Toda e qualquer reação imunológica é uma reação à alteridade. A defesa imunológica volta-se sempre contra o outro ou ao estranho em sentido enfático. O que é igual não leva à formação de anticorpos. Num sistema dominado pelo igual, não faz sentido fortalecer os mecanismos de defesa.

Para Han, é a diferença que ocupa hoje o lugar da alteridade. E ela não provoca nenhuma reação imunológica. O que alimenta a nova patologia da sociedade pós-moderna não seria mais a dimensão viral, mas a violência posta pela positividade, que é resultado da valorização da superprodução, do super desempenho e da super comunicação. Ou seja, uma sociedade da aceleração, do desempenho, do trabalho.

A sociedade do trabalho e a sociedade do desempenho não são sociedades livres. Esses aspectos geram novas coerções, onde cada um carrega consigo o seu campo de trabalho, e com isso, outros regimes para além dos disciplinares. Han aponta que a sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, no estilo foucaultiano, mas uma sociedade do desempenho. 

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Chefes psicopatas (2011), Randy Mora. Ilustração para a Revista Dinheiro, Ed. 385. Via flickr.

A sociedade disciplinar é uma sociedade da negatividade. Ela é determinada pela negatividade da proibição. O verbo modal negativo que a domina é o não-ter-o-direito. A sociedade do desempenho vai se desvinculando cada vez mais da negatividade. Em lugar da proibição, entra no lugar o projeto, a iniciativa e a motivação. Hoje são as academias, os escritórios, os bancos, os aeroportos, os shoppings, e outros dispositivos que valorizam o desempenho que ganham o destaque das antigas instituições disciplinares. Os sujeitos desta sociedade não se chamam mais “sujeitos da obediência”, mas “sujeitos de desempenho e produção”, ou como é propagado pela sociedade neoliberal: empresários de si mesmos cada vez mais rápidos, mais produtivos que os sujeitos obedientes da sociedade disciplinar.

A sociedade disciplinar ainda está dominada pelo não. Sua negatividade gera loucos e delinquentes. A sociedade do desempenho, ao contrário, produz depressivos e fracassados. (HAN, 2014, p.25) 

Para Alain Ehrenberg, a carreira da depressão começa no instante em que o modelo disciplinar de controle comportamental que, autoritária e proibitivamente, estabeleceu seu papel às classes sociais e aos dois gêneros, foi abolido em favor de uma norma que incita cada um à iniciativa pessoal, em que cada um se comprometa a tornar-se ele mesmo. É esta economia do si-mesmo que nos torna depressivos. 

 

O ‘animal laborans´ pós-moderno não abandona sua individualidade ou seu ego para entregar-se pelo trabalho a um processo de vida anônima da espécie.

 

É por meio do excesso de positividade e de desempenho (que se manifesta também com excesso de estímulos, informações e impulsos) que é modificada a estrutura e a economia da atenção, destruindo-as. Somos soterrados pela sobrecarga do trabalho, cada vez mais automatizado, de tempos cada vez mais fluidos e indeterminados, como aponta Jonathan Crary em outra obra, 24/7: capitalismo tardio e os fins do sono, de 2016. Nesta obra, Crary faz um panorama de um mundo em vertigem, cuja lógica não se prende mais aos limites de espaço e tempo. A sociedade funciona para além dos tempos de suspensão e repouso. 

Vamos percebendo cada vez mais que o que causa a depressão do esgotamento não é o imperativo de obedecer apenas a si mesmo, mas a pressão por desempenho. Han aponta que o homem depressivo é aquele animal laborans que explora a si mesmo e, quiçá deliberadamente, sem qualquer coação estranha. É agressor e vítima ao mesmo tempo. É um escravo das multitarefas. 

O animal laborans pós-moderno não abandona sua individualidade ou seu ego para entregar-se pelo trabalho a um processo de vida anônima da espécie. A sociedade laboral individualizou-se numa sociedade de desempenho e numa sociedade ativa. O animal laborans pós-moderno é provido do ego ao ponto de quase dilacerar-se.

E nesse processo de dilaceramento, vamos abandonando cada vez mais os breves momentos de contemplação, lazer e poesia. Aspectos propagados por certos gurus como ócio criativo cabem cada vez menos nos tempos da classe trabalhadora. Há um conflito entre o estado contemplativo versus o tédio (que implica uma necessidade constante de movimento). Se no estado contemplativo somos provocados a sair de nós mesmos, mergulhando na poesia das coisas, hoje em dia, cada vez mais as temporalidades da imagem são aceleradas. Os estímulos são pulsantes e elétricos. O fluxo de informação e demanda por desempenho são a norma. A auto exposição é imperativa.

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Colagem. ilustração para Revista de conteúdo simples. Randy Mora. Via flickr.

A vida contemplativa necessita uma pedagogia específica do ver. Nisso Han, assim como Sibilia, também traz Nietzsche ao debate, destacando sua perspectiva sobre educação. Para o filósofo alemão, há uma necessidade de aprender a ver (habituar o olho ao descanso, à paciência, ao deixar-se aproximar-se-de-si, capacitar o olhar a uma atenção profunda e contemplativa, a um olhar demorado e lento). É preciso aprender a não reagir imediatamente a um estímulo, mas tomar controle dos estímulos.

Em meio a naturalização de tamanhas responsabilidades, a sociedade positiva da transparência, que demanda uma constante extimidade de nossas intimidades (agora exibidas como produtos de si), acabamos por construir uma sociedade do cansaço, enquanto uma sociedade ativa que se desdobra lentamente numa sociedade do doping (possibilita um certo modo de desempenho sem desempenho).

O cansaço da sociedade do desempenho é um cansaço solitário, que atua individualizado e isolado. São os rostos amigáveis nas telas de zoom nas videoconferências, na busca por novas formas de autopromoção do eu, da busca por algum sentido dentro dessa esteira inesgotável de esgotamento. Mas, no fim das contas, há a possibilidade de [re]existir dentro de uma sociedade do fracasso? Mas, optar por se deslocar desta lógica, seria realmente um fracasso?

 

Nota:

[ 1 ] https://tuxdoc.com/download/sopa-de-wuhan-em-portugues_pdf

 


Editores, Anna Galvão e Paulo Vilara.

Revisor convidado, Jair Fonseca.

 

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Bruno Teixeira Paes

É carioca, mas reside em Belo Horizonte desde os seis anos. Gosta de quadrinhos, filmes, jogos de tabuleiro e encontros com os amigos. É músico introspectivo-amador, pesquisador em Educação e entusiasta das experiências de cinema na educação. É formado em Educação Artística (UEMG); mestre em Educação (UEMG), com dissertação referente ao ensino de arte na Educação Básica; e doutor em Educação (UFRJ), com a tese centrada nas experiências audiovisuais na Educação. Já atuou como professor substituto ao ministrar disciplinas no curso em licenciatura em Cinema e Vídeo (UFF). Participou como tutor nos cursos de formação audiovisual e de educação profissional, promovidos pelo Programa Aprendiz Legal, da Fundação Roberto Marinho.

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