TANTAS-FOLHAS
Quadrinhos

Imagens que contam histórias: os quadrinhos norte-americanos e o relato de si e do mundo


As histórias em quadrinhos, os tradicionais e famosos gibis (apelido consolidado no Brasil na década de 1930 e que significa “moleque”), ocupam um espaço afetivo bastante importante na formação cultural das pessoas. Além de um produto da cultura midiática e pop, suas histórias contribuíram (e ainda contribuem) muito para a entrada de crianças e jovens no mundo da leitura. Em cada quadrinho somos convidados a novas experiências, com sua estética ágil, traços, tramas e, mais recentemente, cores. E a experiência é feita de diferentes maneiras, desde as tirinhas de jornal com seus contos breves, das aventuras mensais às grandes histórias fechadas. Quem não se lembra das historinhas da Turma da Mônica (criação de Mauricio de Sousa, em 1959), do Menino Maluquinho e Turma do Pererê (criação de Ziraldo, em 1960), das histórias dos personagens da Disney ou os super-heróis de Marvel e DC?  Sua relevância é simples de ser constatada. Basta ver como as publicações voltadas para as aventuras dos super-heróis ainda despertam o interesse dos consumidores leitores. Com temas que exploram múltiplos gêneros literários, como a literatura de investigação, policial, aventura, ação, terror, humor, ficção científica dentre outros, essas histórias experimentam diversos campos simbólicos, ideológicos e representativos. São exemplos éticos e morais na formação de diversos jovens ao redor do mundo. 

Como produto cultural de massa, os quadrinhos também cumpriram com o papel de divulgação ideológica de aspectos sociais e políticos diversos ao longo dos tempos. Durante a década de 1940, os heróis lutaram contra o Nazismo; em outras situações, as tramas das histórias contribuíram na construção do American way of Life e propagandearam os ideais liberais americanos para o mundo. Em março de 1941 temos a primeira aparição, nas revistas mensais, de um super soldado que assume um protagonismo na batalha das nações democráticas contra o Nazismo. Este personagem era o Capitão América. Mesmo que o “Capitão” tenha passado por transformações profundas em seus aspectos psicológicos e narrativos (inclusive servindo como uma representação crítica do fracasso daquilo que a sociedade americana entende como sua real grandeza), seu início foi cumprindo um papel discursivo e simbólico importante.

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Fragmento da capa da primeira aparição do Capitão América (março de 1941), criado por Jack Kirby e Joe Simon.

As múltiplas mídias, como o cinema, a música e as histórias em quadrinhos compartilhavam da “responsabilidade” formativa dentro da sociedade americana. Ao assumir uma postura mais engajada na proposta ideológica e patriótica americana, os quadrinhos ocuparam o espaço de formação do público infantil. Aliás, mesmo hoje, suas histórias ainda estão embebidas nestes valores. O autor Michael Uslan (1977) apontou que desde a década de 1930, as histórias em quadrinhos têm expressado tendências, estabelecendo padrões do estilo de vida americana. As histórias em quadrinhos reproduzem gírias, morais, costumes, tradições, posicionamentos raciais ou seja, diversos temas que dialogam diretamente com certos aspectos de nosso estilo de vida. 

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Se podemos considerar que o Capitão América foi o primeiro a assumir um papel claro no contexto social e político, esse simbolismo representativo de aspectos gerais de comportamentos e dos valores sociais já eram explorados desde o surgimento do Superman, criado por Joe Shuster e Jerry Siegel em junho de 1938. Sua figura sintetizava, naqueles tempos, vários aspectos íntimos da sociedade americana. Víamos em um imigrante vindo de um mundo extraterrestre, os valores do trabalho (desde sua dupla personalidade- como herói e como o repórter Clark Kent), justiça e verdade (dada a sua formação no interior agrário do Kansas). Ao longo dos anos, sua personalidade também passou por transformações, mas nunca se afastando desses pilares éticos.

O movimento da contracultura americana e os quadrinhos undergrounds

Os desdobramentos políticos da década de 1960 também foram assimilados pelas histórias em quadrinhos. Foi no auge da contracultura norte americana que outros expoentes e temáticas passam a ganhar destaque. A insatisfação dos jovens com os valores tradicionais da geração de seus pais, os impacto da corrida atômica durante a Guerra Fria entre União Soviética e Estados Unidos, o conflito contra o Vietnã e diversos outros conflitos políticos mobilizados pelo governo norte americano em vários países da América do Sul foram os provocadores de movimentos como o Flower power, das músicas de protesto, das drogas sintéticas como caminho para experiências espirituais e mentais, da literatura e poesia marginal dentre outras formas de contestação. 

Foi estimulado por esse contexto que alguns autores partiram para uma radicalização temática e estética, fugindo dos parâmetros fantasiosos das histórias em quadrinhos, como as aventuras, a ficção científica e os casos policiais, para focar em outros temas que estivessem mais próximos de suas próprias vidas e angústias do cotidiano de maneira autobiográfica e autoral.

Histórias em Quadrinhos
Fritz the Cat. Criado por Robert Crumb, foi publicado de janeiro de 1965 a setembro de 1972.

Antes tínhamos histórias produzidas por grandes editoras e produtoras, como a Marvel e Marvel, além das antigas Fawcett, Quality Comics, Wildstorm dentre outras. Mas foi através da produção independente, do mercado de Fanzines e o interesse por temas do cotidiano que as produções de Harvey Pekar e Robert Crumb começam a ganhar os olhos da juventude rebelde e contestadora dos anos 1960. É neste período que vemos uma proliferação de produções que traziam o foco narrativo para a temática mais confessional de forma crua, abordando temas indiscretos (como drogas, o gosto pelo Blues americano e as mulheres); autores que expõem suas vidas para o público como um diário. Harvey Pekar retrata os pequenos infortúnios de sua vida e suas paranoias sociais e a rotina enfadonha da vida do homem comum. Pekar também explorava em suas narrativas uma intimidade com o leitor ao propor a ruptura da quarta parede (aquela que rompe com a passividade do leitor, conversando com ele de maneira direta, convocando o leitor à sua cumplicidade ativa). Crumb e Pekar (dentre outros) inauguram aquilo que seria conhecido como o gênero autobiográfico nas histórias em quadrinhos. 

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Fragmento de “The Harvey Pekar name story”, de Harvey Pekar & Robert Crumb, compilado na The New American Splendor Anthology (1993).

O estilo autobiográfico e de casos do cotidiano eram produtos muito consumidos entre os jovens da contracultura e no cenário underground, mas foi em 1978, com a publicação da obra Um contrato com Deus, de Will Eisner, que as histórias em quadrinhos de cunho narrativo alcançam um outro patamar literário. Esta obra é um dos marcos do que foi sedimentado pelo próprio Eisner como Narrativas gráficas (ou graphic novel). A principal diferença neste estilo de produção é que essas narrativas eram publicadas como se fossem um Romance, uma história fechada. Diferente da escrita dos outros artistas, que partiam da própria vida para construir suas histórias com certa periodicidade, Eisner dedicou parte de sua produção artística a explorar aspectos do cotidiano de maneira circunscrita a um determinado contexto e/ou tema. 

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Em Um contrato com Deus, Eisner analisa a vida de pessoas comuns presentes no mundo real. Composto por quatro contos, todos ambientados em um cortiço do Bronx nos anos 1930, Eisner reflete de forma sensível sobre a experiência de imigrantes, a condição humana e os desafios diários da sobrevivência que, mesmo envolto em miséria, violências, meios precários de subsistência material, humana e moral, consegue encontrar lufadas de poesia entre as esquinas de uma Nova York decadente e perigosa. 

Eisner traz em sua introdução as influências de sua obra, ao declarar sua inspiração nos livros de Lynd Ward (1905-1985), que produzia romances completos em forma de xilogravura e que foram fundamentais na sua formação de leitor durante a infância.

Eisner pavimenta uma estrada que vai trazer o elemento dramático e os temas complexos para as páginas das histórias em quadrinhos. Foi por meio de suas obras, como O contrato com Deus (1978), Trilogia de Nova York (2006), Avenida Dropsie (1995), das representações animalescas de Robert Crumb em sua série de tirinhas Fritz the Cat (1968) que inspiram a grande obra de Art Spiegelman, Maus. Publicado em duas partes – a primeira em 1986 e a segunda em 1991 -, Spiegelman conta a história de seu pai, Vladek Spiegelman, um judeu polonês que sobreviveu aos campos de concentração de Auschwitz. 

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Fragmento de uma capa dupla de “Maus”, de Art Spiegelman. Editado no Brasil por Quadrinhos & Cia. (2005).

A relevância da obra de Spiegelman transcende o mundo das narrativas gráficas ao trazer para o foco um resgate biográfico do tema do holocausto e a luta de seus sobreviventes. A importância do trabalho de testemunho e resgate da memória levou a criação de Spiegelman a ganhar o prêmio Pulitzer de Literatura, em 1992. Tal evento é um importante marco para o mercado independente das editoras e do universo dos super-heróis. A partir de Maus vemos uma outra valorização destas histórias. Agora elas não cumprem um simples papel de entretenimento e/ou de contestação de costumes. Maus é uma experiência de resgate da memória que atravessa o tradicional campo dos quadrinhos, e o prêmio em Literatura destaca isso. Maus é uma rica fonte de estudos em diversas áreas como as Artes, Literatura, Psicologia, História. 

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O livro retrata fatos históricos em uma perspectiva intimista, de dor e angústia da família Spiegelman, desde a ascensão do nazismo até a perseguição dos judeus. Além da parte histórica, a obra explora a dimensão do testemunho (relatado por Art ao entrevistar seu pai sobre a experiência de sobrevivência) e da assimilação do elemento judaico pelo próprio Art Spiegelman. Além da representatividade narrativa da história, Maus também explora um outro campo do simbólico, ao representar seus personagens como animais. Spiegelman conta que o início do processo de zoomorfização de seus personagens surgiu em uma conversa com o amigo e documentarista Ken Jacobs. Jacobs ressaltou como várias produções e animações do início do cinema utilizavam de uma alegoria preconceituosa para representar os negros (com suas expressões fortes e movimentação corporal muito próximas da do macaco que faz travessuras), que só pensam em aplicar pequenos golpes e seduzir mulheres).

Foi também no período em que buscava encontrar um estilo para representar os personagens de sua história que Spiegelman descobre um documentário antissemita alemão chamado The Eternal Jew (1940). O filme sugeria uma metáfora visual dos guetos judeus como ambientes de esgoto infestados por ratos. Tal imagem deixou claro que o processo de desumanização é uma das principais estratégias do projeto de apagamento (e extermínio) do povo judeu. Assim, Spiegelman traz a reflexão crítica desta memória da representação dos judeus apresentados com fisionomia de ratos, os nazistas como gatos, os americanos como cachorros e os poloneses como porcos. Tal recurso reflete o espírito do livro e a representação da brutalidade como os judeus são vistos pelos nazistas (enquanto uma praga que deve ser exterminada), os americanos como os cães (que só pensam e agem por meio da força) e os poloneses enquanto porcos que se submetiam às vontades ardilosas dos gatos nazistas.

A dimensão do relato de Maus vai além da própria questão da memória. Ela aborda também a miséria humana pela figura de seus próprios familiares. Spiegelman também coloca em dúvida o posicionamento ético de seu pai. Em alguns momentos vemos Vladek como um homem destemido, valoroso, mas que também carrega comportamentos mesquinhos e racistas. 

É seguindo a estrada de Maus que outros autores começam a explorar ainda mais a intimidade e o relato por meio das histórias em quadrinhos. São essas histórias que abriram novos campos de leitura e valorização desta forma de expressão que alia narrativa, novas visualidades e temas cada vez mais caros do próprio comportamento humano. Um importante registro de narrativas pessoais que já há muito tempo se afastou do mero entretenimento.  Essa valorização ganhou destaque na academia, e agora temos campos de estudo como os comics studies (ou comics art studies, sequential art studies ou graphic narrative studies) que promovem a relevância dos quadrinhos em campos como a semiótica, estética, sociologia, estudos comparados e estudos culturais. Nesses campos, o interesse transcende os aspectos técnicos da criação para investigar os discursos e provocações filosóficas, as interfaces entre quadrinhos e outras formas artísticas. Hoje, temos uma vasta produção de histórias para todos os campos de interesse. Os amantes da ficção, das histórias documentais, auto e biográficas encontram grandes artistas e histórias. Abaixo damos a sugestão de cinco dicas. Essa conversa não termina por aqui. Em um próximo encontro aprofundaremos um pouco mais em outros estilos e gêneros desta arte. Até breve!

Histórias em Quadrinhos: dicas de leitura

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O texto é parte integrante da Revista Tantas-Folhas, edição v.1, n.1 (2020)

Bruno Teixeira Paes

É carioca, mas reside em Belo Horizonte desde os seis anos. Gosta de quadrinhos, filmes, jogos de tabuleiro e encontros com os amigos. É músico introspectivo-amador, pesquisador em Educação e entusiasta das experiências de cinema na educação. É formado em Educação Artística (UEMG); mestre em Educação (UEMG), com dissertação referente ao ensino de arte na Educação Básica; e doutor em Educação (UFRJ), com a tese centrada nas experiências audiovisuais na Educação. Já atuou como professor substituto ao ministrar disciplinas no curso em licenciatura em Cinema e Vídeo (UFF). Participou como tutor nos cursos de formação audiovisual e de educação profissional, promovidos pelo Programa Aprendiz Legal, da Fundação Roberto Marinho.

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