TANTAS-FOLHAS

Escrever é gesto de carinho, como fazer um bolo gostoso para alguém que você ama | Cartas da Suécia


A pandemia trouxe tristezas profundas à humanidade. De Estocolmo, Clarice Goulart escreve para uma amiga brasileira que perdeu o pai para o vírus, e cuja mãe está hospitalizada, padecendo do mesmo mal. Nesse panorama de incertezas, Clarice pergunta: as crianças conseguirão sonhar em tempos tão  obscuros?

 

Estocolmo, 25 de fevereiro de 2021.

Giselle, minha querida,

 

Me faltam palavras. Não sei o que dizer além da minha imensa vontade de te abraçar e te confortar dizendo que vai ficar tudo bem. Que essa merda toda vai passar. Assim como a sua dor. Aliás, não, a sua dor possivelmente amenizará mas não passará. Te confesso que já não sei mais o que pensar: ao mesmo tempo que tento ser otimista, escuto a voz da minha vó materna sussurrando insistentemente nos meus ouvidos, ”nada é tão ruim que não possa piorar”. Como de costume, ela via a vida com olhos pessimistas, de coração doce mas amargo. E foram com eles que ela se agarrou à vida através das suas beiradas e delas parecia tirar a sua força. Como só ela fazia, a tal da minha vó Tereza costumava também responder: ”tirando os problemas tá tudo bem”. Ou o que veio a se tornar um clássico dela já nos avançados anos ranzinzas da sua existência de 80 e alguns anos: ”tô só um caquinho mas ainda tô de pé”. Até quando ficaremos de pé? seria a pergunta que faria a ela hoje, se ainda estivesse aqui. Fico me perguntando o que ela acharia disso tudo. Dessa época de barbaridades.

Queria ter a sensibilidade para te contar algo bonito, alegre, te escrever um poema ou fazer um bolo, cantar uma canção, qualquer coisa que conseguisse te animar e te tirar, mesmo que momentaneamente, desse lugar chamado dor, que só aqueles que perdem algum ente tão querido e próximo de maneira bruta, injusta, repentina, sabem como ele é. Me dói muito, mesmo não o tendo conhecido pessoalmente. E quando penso em você, choro. Por ele. Por ela. Você que sempre sorriu.

Sinto que vou caminhando com os passos da vó e vou me agarrando nas beiradas das coisas. De uma forma mais otimista, é verdade, talvez na tentativa de manter a cabeça sobre a superfície, apesar da distância, das perdas que cada vez mais vão se aproximando, tomando forma concreta da morte,  do medo e da vontade de estar entre os meus. Olho para a Alma e penso no futuro dessa geração de crianças e das que estão por vir. 

 

Essa migração laboral só se fez possível porque o governo subsidiou uma grande parcela dos salários e lançou outros pacotes de auxílio para os mais variados setores, inclusive o cultural, que foi um dos primeiros a desmoronar.


Dia desses, li o artigo da sempre gigante Eliane Brum, publicado há algumas semanas no El País, sobre o que significa cuidar de um filho na pandemia, principalmente num país como o Brasil atual. O texto me rasgou uma fenda, me deu uma perspectiva que ainda não havia pensado, e me senti bem envergonhada por perceber a minha ignorância. Desde então, não consigo parar de pensar no papel das escolas e no impacto da migração do ensino presencial para o digital, isso quando o ensino a distância é possível, para não mencionar os casos onde a brutalidade é tamanha, que nem o digital se faz possível, deixando um vácuo na vida dessas crianças, assim como desespero em dobro para os pais ou responsáveis, que nesses casos já enfrentam inúmeras outras batalhas. Tenho então revisitado esse lugar de mãe onde me encontrei no decorrer de todo o ano passado, e que ainda me encontro. Não me refiro à maternidade em si, mas a esse privilégio de viver com a minha filha aqui na Suécia e de estarmos enfrentando este momento da forma que estamos, por mais difícil que seja estar longe da minha família aí no Brasil. Tento fazer o exercício de empatia e solidariedade com aqueles que ainda se encontram em meio à aspereza desse hiato na existência dos seus filhos.

Como você sabe, a Suécia nunca chegou a fazer um lockdown, o que significa dizer que as escolas ficaram abertas durante todo esse tempo. Essa decisão fez com que a vida das crianças pudesse seguir dentro de certa normalidade e, consequentemente, seus pais puderam continuar trabalhando, eu incluída, mesmo que de casa, já que a maioria das empresas, pequenas ou grandes, permitiu (e encorajou) que seus funcionários trabalhassem de casa com o intuito de manter o funcionamento do país. Muitos ainda prosseguem assim, eu, mais uma vez, incluída. Essa migração laboral só se fez possível porque o governo subsidiou uma grande parcela dos salários e lançou outros pacotes de auxílio para os mais variados setores, inclusive o cultural, que foi um dos primeiros a desmoronar.

Apesar de questionada mundialmente e criticada internamente por seus cidadãos, a Suécia manteve a sua estratégia de não fazer um lockdown (ainda que tenha a maior média de mortes registradas entre os países nórdicos: 12.664 no exato momento em que te escrevo), ao contrário de seus vizinhos nórdicos e o resto da Europa. Eu mesma oscilei entre ser uma apoiadora feroz e uma crítica assídua quanto ao posicionamento sueco para lidar com a pandemia. Particularmente, sigo oscilando e não sei dizer ao certo o que penso. A verdade é que se olharmos puramente através da perspectiva infantil, penso que foi o melhor que podiam ter feito. Obviamente, considerando as condições socioeconômicas do país, assim como o seu tamanho populacional. Importante frisar que me refiro aqui especificamente ao contexto sueco. 

As crianças seguiram firmes em sua normalidade escolar, em especial as crianças das escolas primárias e ensino fundamental.  Além de permitir que os pais pudessem continuar trabalhando, principalmente aqueles que desempenham papéis fundamentais para a sociedade na urgência desse momento delicado, como os profissionais de saúde e professores, o que em parte pautou a decisão foi o fato de que normalmente as crianças frequentam escolas próximas às suas casas e com isso não precisam percorrer longas distâncias ou pegar transporte público, correndo assim um menor risco de contágio e transmissão. Diferentemente dos adolescentes do segundo grau ou universitários, que percorrem maiores distâncias para chegar às escolas ou universidades, e assim ficam expostos a um risco maior de contágio e de transmissão, o que fez com que esse ensino migrasse para o digital da noite para o dia. Aqui, penso nas minhas amigas professoras que lecionam na Suécia, tanto universitárias quanto de escolas secundárias, que estão há quase um ano na frente do maldito Zoom. No desgaste delas. Na responsabilidade de tentar sobreviver a esse tempo suspenso, tempo estranho, se agarrando em suas beiradas.

Conversando com uma amiga, professora de Educação Física em uma escola internacional aqui em Estocolmo, ela levantou um ponto que não deve ser esquecido nessa matemática sueca e que talvez seja o mais importante de todos: que a normalidade na vida dessas crianças vem a um custo alto da saúde física e mental de muita gente, em especial os professores, que diariamente estão na linha de frente dessa batalha insana. O medo de ficar doente, o medo de estar contaminada e contaminar alguém, o medo de saber que a qualquer momento a notícia de que alguém próximo, seja aluno ou colega de trabalho, está doente. Como lidar com isso? E qual o impacto disso nesses profissionais da educação? Mesmo assim, eles seguem firmes. O ditado, ”é preciso uma aldeia inteira para criar uma criança”, nunca fez tanto sentido. 

E volto a pensar nas crianças pequenas, na minha. Como elas puderam seguir sonhando, mesmo que esse sonho tenha sido pautado por receios e a conscientização de que algo mau estava acontecendo lá fora, e que a qualquer hora ele poderia chegar aqui dentro? Seja como for, se certa ou não em sua estratégia para lidar com a pandemia, é admirável como a Suécia trata as suas crianças: o respeito, a segurança e o bem-estar delas estão em primeiro plano sempre. Mantendo-as nas escolas, elas correm um menor risco de serem expostas a um outro vírus imensamente letal e presente aqui também: a violência doméstica.

O que mudou na vida das crianças em termos de vivência escolar? O fato de os pais estarem proibidos de entrar nas escolas, tendo que deixar suas crias na porta, e as atividades que passaram a ser feitas em sua maioria ao ar livre, fazendo chuva ou sol, calor ou neve, para assim diminuir a possibilidade de transmissão caso alguém estivesse doente. Além, obviamente, da lavação constante de mãos e o desafio de manter a distância física entre elas. Cá entre nós, algo que está no campo do impossível. Quando me volto à realidade do Brasil, às palavras certeiras da Eliane Brum, estremeço. 

Li recentemente o livro Intimations, da maravilhosa Zadie Smith, uma pequena coleção de ensaios escrita e lançada no ano passado, onde, entre outros temas, ela discorre de forma precisa sobre a morte de George Floyd, o legado da escravidão, as inúmeras falhas estruturais trazidas à tona pela covid-19. O contexto é os Estados Unidos, mas poderia se aplicar claramente ao Brasil, ou mesmo à Suécia (em planos distintos). Entre tantos assuntos urgentes, uma das passagens que mais me marcou está no ensaio Algo para fazer (Something to do), onde ela define que ”escrever um livro é o mesmo que fazer um bolo”. Ambos são uma forma de preencher o tempo. Oferendas indiretas de amor àqueles que amamos.

Quis ocupar o seu tempo com esta carta. Te distrair por alguns minutos, inocência ou arrogância minha achar que tenho esse direito. Sinto que misturei os assuntos, faltou coerência, talvez seja reflexo dos tempos que estamos vivendo. Mesmo correndo o risco do ridículo, e já que a distância não permite que eu te faça um bolo, te escrevo estas linhas tortas como oferenda a você. Ao seu pai. À sua mãe. Ao desejo de um futuro do presente que eternize a memória daqueles que não mais estão conosco no aqui e agora, e que faça com que nossas crianças possam voltar a sonhar sem medo do que esteja além do seu alcance. Na minha incapacidade de te escrever e presentear com um poema próprio, termino com dois poemas (com traduções livres minhas) de uma das minhas escritoras-poetas suecas favoritas, Karin Boye. Esses dois poemas fazem parte do seu primeiro livro de poesia, Moln (Nuvem), publicado em 1922, quando ela tinha apenas 22 anos de idade, no qual ela compila as indagações de uma jovem escritora sobre a existência de Deus, as falhas e carências da vida, assim como a incerteza sobre o futuro.


MINNE 

Stilla vill jag tacka mitt öde:
aldrig jag mister dig helt.
Som en parla växer i musslan,
så inom mim
gror ditt daggiga väsen ljuvt.
Om till sist en dag jag har glömt dig –
då är du blod av mitt blod,
då är du ett med mig – 

det gudarna give.

MEMÓRIA
Silenciosamente quero agradecer ao meu destino:
nunca te perderei completamente.

Como uma pérola que cresce no mexilhão,
dentro de mim
cresce a sua essência orvalhada e doce. 

Se por fim um dia eu te esquecerei –
então você será sangue do meu sangue,
então você será um comigo –
que os deuses assim concedam. 

 

MORGON 

När morgonens sol genom rutan smyger,

glad och försiktig, 

lik ett barn, som vill överraska 

tidigt, tidigt en festlig dag – 

då sträcker jag full av växande jubel

öppna famnen mot stundande dag – 

ty dagen är du,
och ljuset är du,
solen är du,
och hela det vackra, vackra,

väntande livet är du!

MANHÃ
Quando o sol da manhã entra sorrateiramente pela janela,

alegre e cauteloso,

como uma criança que quer surpreender

cedo, bem no início de um dia festivo –

então eu me estico cheia de aplausos crescentes
o peito aberto para o dia que chega –
o dia é você,
e a luz é você,
o sol é você,
e toda a beleza, a beleza
da vida que espera é você!

 

Com a vida que espera e você em mim te deixo aqui.

Clarice 

 


Leia mais COLUNA CARTAS DA SUÉCIA em Tantas-Folhas.

Apoie o  trabalho editorial independente de Tantas-Folhas curtindo e interagindo em nossas páginas:

Tantas-Folhas no instagram

Tantas-Folhas no Facebook

Clarice Goulart

Mineira, radicada desde 2008 em Estocolmo, na Suécia. É graduada em Letras pela UFMG e pós-graduada em Estudos da Tradução pela Universidade de Estocolmo, onde também cursou Cinema e TV. Produtora cultural freelancer e programadora de festivais de cinema, possui currículo extenso em colaboração com os principais festivais de cinema da Suécia, entre eles, Göteborg Film Festival, Bergman Week e Tempo Documentary Festival. Entre 2011-2016 foi produtora do BrasilCine, única mostra de cinema brasileiro na Escandinávia. Atualmente, é produtora e programadora do Panoramica - Stockholm’s Latin American Film Festival e coordenadora do Departamento de Drama do SVT, canal sueco de televisão pública. Nos projetos em andamento, há parcerias entre Brasil e Suécia, como o documentário Fico te devendo uma carta sobre o Brasil, de Carol Benjamin.

Comentários