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Natal

O Natal de Janaina | Máquina de escrever


A infância

Os dias eram compridos e modorrentos, mas ela vivia a sonhar…

Natal
Fantástico, de Rosina Becker do Valle,1974.

Em 1985, ela tinha 7 anos de idade e já conhecia as Reinações de Narizinho. Não sabia que Taubaté era a terra do pai da menina de narizinho arrebitado, mas, do quintal de sua casa, em Bragança Paulista, podia avistar os pássaros que voavam em direção à Serra da Mantiqueira. No seu jardim tinha várias árvores frutíferas, mas a sua fruta preferida eram os morangos silvestres, que ela colhia no bosque habitado por sacis, corujas e curiangos. Sua maior vontade era coroar Nossa Senhora, na igreja pequenina que ficava do outro lado da cidade, mas seu maior sonho era ver flocos de neve embelezando as noites mágicas de sua infância. Gostava de brincar sozinha e se imaginava dando aulas para os gnomos e duendes que habitavam o seu imaginário. Janaina era filha única e os seus melhores amigos eram o Sapo Lírico e a Galinha Jururu, que botava ovos vermelhos como as bolinhas da árvore de Natal. Os dias eram compridos e modorrentos, mas ela vivia a sonhar com a viagem que o seu pai havia lhe prometido para as próximas férias.

A Travessia

Café com pão, café com pão, café com pão, agora sim, voa fumaça.

Natal
Paisagem imaginante: Ouro Preto, de Alberto da Veiga Guignard, 1939.

Naquela noite de 24 de dezembro, a menina do interior foi vencida pelo sono e não pôde aguardar a visita de Papai Noel. Tinha brincado no sol e estava um pouco febril. Nas horas mortas sonhou que tinha se transformado numa ninfa e viajava num trenzinho caipira. Um velhinho chamado Candinho ouvia no rádio a Bachiana n. 2 e, sem que ela percebesse, pintava o seu retrato com tintas coloridas. Ela não podia fazer a menor ideia, mas o pintor era Cândido Portinari e o autor da música que ele ouvia era Heitor Villa-Lobos. Pela janela lateral do trem Janaina suspirava e admirava as montanhas. A Maria Fumaça deslizava nos trilhos no ritmo dos versos do poeta pernambucano, cuja boca era um piano de calda com as teclas pra fora: “Café com pão, café com pão, café com pão, agora sim, voa fumaça”. Já em terras mineiras, um belo senhor chamado Manuelzão passou recolhendo as passagens e dando bom-dia para todos os viajantes. Algumas horas se passaram e a nossa pequena já podia avistar as luzes do antigo Curral del Rei, arraial da Comarca de Sabará, Minas Gerais, situado no local onde, em 1897, implantou-se a cidade de Belo Horizonte, nova capital do Estado, planejada e construída em substituição à antiga Vila Rica, hoje Ouro Preto, destino da heroína dessa história.

O Natal

Vai, Janaina, ser gauche na vida.

Natal
Natividade, de Rosina Becker do Valle ,1989.

Em Belo Horizonte, Janaina ficou fascinada com os enfeites de Natal e também com o pôr do sol que enfeitava a sua viagem. Amou os arcos do Viaduto de Santa Tereza e sorriu emocionada quando chegou na Praça da Estação. Na capital mineira visitou o Presépio do Pipiripau e mais uma vez sentiu a força de sua fé, no Deus menino, que mais uma vez renascia para abençoar a humanidade. A caminho da terra do poeta Gonzaga e da musa Marília, tomou café com pão de queijo, avistou no céu os balões de Guignard, e no meio de intensa neblina se alegrou ao ver de longe as torres das igrejas do Aleijadinho. Quando chegou em Ouro Preto foi transportada por um carro de boizinhos do mato diretamente para a Missa do Galo, na Igreja do Pilar. Quando se ajoelhou a rezar, o anjo que guardava a Sagrada Família ajoelhou-se ao lado dela e disse: “Vai, Janaina, ser gauche na vida”.

Galileu Edições (Londrina, 2019), tiragem de 15 plaquettes.

 

 

Jovino Machado

Jovino Antônio Rabelo Machado nasceu no dia 03 de agosto de 1963, em Formiga (MG). Foi criado em Montes Claros e vive em Belo Horizonte. Publicou poemas nos periódicos: Suplemento Literário de Minas Gerais, Caderno Pensar, Rascunho, Cândido, Poesia Sempre, Cem Flores, Jararaca Alegre, A Parada, Dez Faces, entre outros. Publicou mais de vinte livros e livretos. Em 2015 participou da prestigiada Coleção Leve um Livro e reuniu toda a sua obra no volume Sobras Completas. Atualmente escreve resenhas literárias para o site Dom Total. Lançou recentemente o livro A Trilogia do Álcool, Impressões de Minas (2021). Ver mais em Bibliografia Jovino Machado 

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