TANTAS-FOLHAS
Tom Jobim e Vinicius de Moraes

Música brasileira: a grande arte de um país que está fora do tom


Música brasileira
Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Foto: Alberto Jacob/VEJA.

A música brasileira sempre foi – e ainda é – uma das expressões culturais mais ricas e reconhecidas de nosso povo. Se focarmos apenas no mundo ocidental, em nenhum outro lugar a música realmente popular, especialmente aquela expressa na forma de canção – junção de música e letra –, é tão diversa e criativa, carregada de sentido, tão forte como fator de identidade e pertencimento. Até o início do evento da globalização cultural, propiciada pela Internet, o que mais se aproximava, na Europa, do que conhecemos aqui como música popular era a música folclórica ou tradicional, que, contrapondo-se à chamada “música séria” – erudita, clássica ou escrita –, a ela muito se assemelhava no sentido do conservadorismo: seja no flamenco espanhol, no fado português ou na tarantela italiana, pouca ou nenhuma transformação se faz notável até hoje.

Música popular brasileira

No território da música popular brasileira, parece que música e palavra estão juntas desde sempre, e de uma forma tão orgânica e visceral que, ao falarmos de música no Brasil, imediatamente nos vem à mente alguma canção, nova ou antiga, que praticamente marcou quase toda a sociedade. Sem falar da qualidade destas canções: em qual outro lugar do mundo podemos pensar em um casamento lírico tão perfeito entre música e palavra como na canção “Travessia”, de Milton Nascimento e Fernando Brant (“Quando você foi embora / Fez-se noite em meu viver…”), ou em “Garota de Ipanema”, do maestro soberano Tom Jobim e Vinícius de Moraes (“Ah, por que estou tão sozinho? Ah, por que tudo é tão triste?…”)? No tempo em que a palavra foi proibida, a canção falou alto, como em “Cálice”, de Chico Buarque e Gilberto Gil (“Como beber dessa bebida amarga, tragar a dor, engolir a labuta?”), um dos ícones de militância explícita dos anos 1970. Em tempos mais recentes, outros autores seguiram misturando brilhantemente música, palavra e política, como o pernambucano Lenine, em “Na Pressão”, numa parceria com Bráulio Tavares e Sérgio Natureza (“Chacina no centro-oeste, e guerrilha na fronteira, emboscada na avenida, tiro e queda na ladeira, mas feitiço é bumerangue perseguindo a feiticeira – olho na pressão, tá fervendo…”). Não é à toa que os mais conhecidos letristas de nossa música preferem ser reconhecidos exatamente como letristas, e não como poetas: letra de música, no Brasil, é uma arte com identidade própria. 

Música brasileira
Milton Nascimento, ao lado de Fernando Brant, no Maracanãzinho, quando apresentava a canção “Travessia”, classificada em 2º lugar no Festival Internacional da Canção, 1967.

Muito já se falou e estudou sobre a música popular brasileira, seria inútil tentarmos abordar neste artigo a sua história, suas inúmeras faces, estilos, contextos (inclusive sociais) e características estéticas. Bibliografia de qualidade é o que não falta sobre o tema, sejam artigos de especialistas, crônicas, filmes ou tantos livros comentados ou biografias de grandes nomes da nossa música. Também há vasto material de pesquisa sobre o papel da música na luta pela democracia durante o período dos 21 longos anos de ditadura no Brasil após o golpe civil-militar de 1964, época de enorme efervescência das canções de protesto e dos grandes festivais de MPB, cuja popularidade foi impulsionada pela então recente chegada da televisão ao Brasil. 

Música brasileira
Em 1973, a censura da ditadura militar brasileira vetou a letra da canção “Cálice”, de Chico Buarque e Gilberto Gil.

Presença do negro na canção brasileira

Somos um povo que canta! E por sermos assim, um povo tão musical, é que a música popular brasileira se tornou personagem importantíssimo da política nacional, muitas vezes até como protagonista das lutas pela democracia no Brasil. Desde as marchinhas dos anos 1930, que ora exaltavam Getúlio Vargas, ora o criticavam severamente, ou as que fizeram a campanha de Jânio Quadros no início dos anos 1960, passando pelo samba em suas diversas vertentes Brasil afora e pela chamada MPB, e até o rock nacional dos anos 1990, a canção popular, em toda sua diversidade, sustentou opiniões e críticas que arejaram e impulsionaram a democracia. Mas há algo que nos parece ter passado quase sempre desapercebido ao longo de tantos e tantos anos: já é hora de admitirmos que é por influência dos afrodescendentes, daqueles que vieram pra cá trazidos como escravos, que nos tornamos essa nação que canta, em música e letra, suas dores e alegrias, seus medos e fracassos, seus sonhos e esperanças. Foram eles, os negros que aqui chegaram à força, que trouxeram o hábito ancestral de se sentar em roda para contar e ouvir histórias, para dançar e cantar, para celebrar os duros dias. 

Os navios traficantes do povo negro trouxeram da África não só homens e mulheres como corpos escravizados. Vendidos como seres sem alma pra aliviar a culpa dos compradores, esses corpos vieram carregados de cultura – e, muito especialmente, de cultura musical, de tambores, ritmos e cantos. É preciso aceitar e entender que, na multicentenária construção e manutenção do (sempre escamoteado) racismo nacional, praticamente todas as referências disponíveis – seja na canção, na literatura e até nos filmes – descrevem a senzala de forma romantizada: em sua péssima estrutura habitacional, mas com um terreiro animadíssimo. Fogueira e batuque, a noite inteira, tiveram papel primordial na formação da nossa cultura festiva e extremamente musical. 

Se alguém pensava ou desejava que a música africana se calasse depois da controversa Lei Áurea, não podia sequer imaginar a enorme diversidade de ritmos em que ela se desdobraria. A indústria fonográfica no começo do século XX, em todo o mundo, percebeu rapidamente esse bom negócio: por onde passou a diáspora africana, a música revelou-se elemento importante na resistência cultural. Em Cuba, nos EUA ou em Londres, ritmos e tradições como o lundu, o blues, o jazz – e tanto mais! – foram gerados pela cultura negra e, com o tempo, passaram a ocupar a linha de frente da produção musical desses e de outros países. Aqui no Brasil, entretanto, a maior parte da população simplesmente desconhece quem foi Eduardo Sebastião das Neves, nascido no Rio de Janeiro, descendente de escravizado, palhaço, músico e compositor, o primeiro negro a gravar um disco… Mesmo o disco “Áfrico”, gravado há 18 anos pelo mineiro Sergio Santos com letras suas e de Paulo César Pinheiro, um portentoso documento sobre as origens africanas da nossa música, ainda é muito menos conhecido do que deveria.

Eduardo Sebastião Neves
Eduardo Sebastião das Neves (1874-1919). [1] Foto: Memórias Cinematográficas.
A nosso ver, é o persistente e indisfarçável racismo estrutural da nossa sociedade, em grande parte causador e mantenedor também da vergonhosa desigualdade econômica que esgarça nosso tecido social cada vez mais, que segue mantendo importantes manifestações musicais de origem africana quase no mais perfeito anonimato da música popular brasileira: o tambor de crioula, a chula, a congada, o maculelê, o maracatu do baque virado, o samba de coco, a catira, o caxambu, o samba de lenço… onde estão, que quase ninguém os conhece, propriamente? Continuam vivos e fortes em inúmeras comunidades e grupos “escondidos” pelo Brasil afora, que cultivam a prática secular desses e de outros ritmos tão genuinamente brasileiros quanto o samba carioca ou paulista, ou o forró nordestino, ou o axé baiano, que apenas nas últimas duas ou três décadas alçou um voo mais alto e tornou conhecidas nacionalmente algumas tradições musicais “da negra Bahia”.

Tambores e vozes da liberdade na triste época da escravidão, enquanto tocavam os negros resistiam culturalmente e se impunham, davam o tom das noites e tiravam o sono de seus senhores e “donos”, levando alguns às raias da loucura. Ali combinavam suas fugas, mantinham viva sua cultura. A despeito das pesadas dificuldades logo após a Abolição, difundiram a capoeira, fizeram sobreviver suas religiões, seus pratos de culinária e seus ritmos musicais. 

É nas mãos dos artistas que construímos e vivemos o conceito de nação. Esses tambores e vozes tão fortes dos afrodescendentes são música e palavra que precisam ser novamente libertadas. E isto é política, necessária e urgente. 

 

[1] Eduardo Sebastião das Neves, hoje, é mais conhecido como cantor ou cançonetista (como era chamado na época), e junto com Baiano foi um dos pioneiros das gravações sonoras (em discos mecânicos) no Brasil


O texto é parte integrante da Revista Tantas-Folhas, edição v.1, n.1 (2020)

Gisella Goncalves

É produtora cultural e diretora artística da Borandá Produções e da Passagem Produções. Estudou Física e Filosofia na UFMG. Acredita e luta por mais justiça e solidariedade, mais memória e menos desigualdades.

Graca Cremon

É socióloga e produtora cultural, criadora de inúmeros projetos no setor cultural. Acredita que Arte e Cultura são ferramentas para construir um mundo melhor, priorizando o meio ambiente e todos os seres viventes.

Comentários