TANTAS-FOLHAS
Racismo

Racismo e necropolítica: é esta uma pandemia consentida?


Silvio Almeida
Silvio Almeida, filósofo, jurista, professor e escritor. Foto: Christian Parente/Divulgação (via El País)

Em recente entrevista para O Globo, Silvio Almeida, autor de ‘Racismo Estrutural’, afirmou que primeiro é preciso compreender que o racismo é um fenômeno mundial e que as pessoas descobriram que o racismo não é uma patologia. É o que organiza a vida delas’. Ele alerta que a pandemia pode fazer o racismo criar novas formas de modo a manter as desigualdades e estruturas de dominação. 

Ora, as raízes do racismo contemporâneo remontam ao século XIX, onde a ideia de superioridade da “raça” branca era parte constitutiva da ideia de “progresso” – um constructo da filosofia positivista, símbolo da bandeira do Brasil. 

Um dos principais formuladores das teorias racistas que justificavam a pseudo superioridade intelectual, física e moral dos brancos europeus foi o conde francês Joseph-Arthur Gobineau (1816–1882) com a publicação de seu Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas (1855). Se os outros povos eram inferiores, como poderiam ter os mesmos direitos dos europeus? 

Os indesejados

A noção de superioridade racial passara a ser legitimadora da ordem imperial, na qual o fornecimento ininterrupto e a bom preço de matérias primas era o combustível para o funcionamento da economia internacional. As teorias raciais surgiram para legitimar uma concepção de mundo que pregava liberdade, igualdade e fraternidade entre brancos e que justificava a super exploração de outros povos. 

No século XIX, os maiores países europeus tornaram-se centros de poder imperial, invadindo, conquistando e ocupando colônias diretamente na África à medida que as colônias americanas ficavam independentes. A questão que fica é como regimes liberais, lastreados nas ideias da Revolução Francesa (1789), poderiam colonizar nações inteiras, subjugando povos e culturas sob a luz do iluminismo e da modernidade? 

Frantz Fanon, psiquiatra e filósofo marxista, e Aimé Césaire, poeta, ensaísta e um dos criadores do conceito de negritude, questionaram a centralidade cultural da Europa. É uma construção política que tem base na Modernidade: a ideia de que é necessário expandir as conquistas civilizatórias dos brancos europeus para outros povos. Essa ideia foi naturalizada, está na cabeça das pessoas.

A ideologia do racismo propalou para dentro de cada país, para a periferia do sistema e no Brasil não foi diferente. O racismo tornou-se a explicação determinista para a dominação de raça, de gênero e de classe, de estratificação e exclusão social, da europeização acrítica das elites dominantes e o branqueamento da população como projeto político da nacionalidade. Ex-escravizados, os homens e as mulheres negras, além de serem discriminados racialmente pela cor da sua pele somaram-se à população pobre e formaram os indesejados dos novos tempos, os deserdados da riqueza socialmente produzida pelo trabalho coletivo.  

A gravidade da crise social no Brasil

Cornel West, filósofo e ativista afro-americano citado por Silvio Almeida na mesma entrevista ao O Globo, disse que estamos no meio de uma tempestade perfeita. Pandemia, crise econômica, Trump, violência policial, e a alternativa oferecida é a repressão. As pessoas estão desesperançadas, cansadas, saturadas dessa falta de horizonte. Nem do ponto de vista cultural oferecemos um espaço para o sonho. Não há espaço para uma vida no meio desse horror. As pessoas têm que escolher entre morrer doentes, de tiro ou de fome. 

A atual crise do Brasil é gravíssima, não é por efeito apenas da crise sanitária, da saúde pública, aguçada pela pandemia do coronavírus, mas pelo fato de ser fruto da aglutinação, num mesmo período, de uma crise econômica que gerou uma crise social advinda de uma crise política derivada de um golpe político. Acrescente-se aí a crise ambiental com todas as agressões que os donos do Capital impingem aos bens da natureza. Não sei se é a pior crise do Brasil em toda a sua história, no entanto, vai impor a todos nós a reflexão de como vamos sair dela. 

O governo Bolsonaro é resultado dessa crise política e de valores civilizatórios. E o pior: enfrentamos neste período uma situação onde o governo federal é composto por um sujeito que adota métodos fascistas de governar, que prega o ódio, que quer destruir os adversários, que não aceita a democracia e é o responsável direto pelas mortes que estão acontecendo. 

É inquestionável o que o cenário de pandemia escancara: a alarmante desigualdade social e racial, que dificulta ainda mais o acesso da população negra às questões de necessidade básica. Enquanto observamos os aumentos dos casos de Covid-19, a fome segue, o encarceramento em massa continua e os corpos pretos seguem sendo o alvo principal da violência do Estado e da negligência e omissão de setores brancos da sociedade brasileira. 

O Brasil é historicamente um país racista, mas hoje ocorre algo ainda mais grave. É a primeira vez na História em que ele incorpora de maneira ativa o discurso da supremacia branca. Sempre houve o discurso da superioridade branca, quanto mais branco for, mais superior você é. Mas, agora, temos um governo com vínculos com a supremacia branca. É um projeto genocida, que mata as possibilidades de futuro. 

O sub-colonialismo do atual governo chega a ser patético, mas as elites estão apostando que é possível controlá-lo e, ao mesmo tempo, acelerar o projeto do Capital. Além de não conhecer os destinos da sua própria Nação, elas, as elites, não têm projeto de país e com a intensificação dessa política ultra neoliberal, que retira direitos dos trabalhadores, privatiza as estatais e produz fome, desemprego, baixa renda, cujo objetivo final é o de subordinação aos interesses do governo dos Estados Unidos. 

O que eles querem é privatizar ao máximo as florestas, as terras públicas do Amazonas, os minérios, o petróleo, as águas e até o ar. Nunca é demais reafirmar que os bens comuns, os bens da natureza não são do governo, são patrimônio do povo. 

De todo modo, devemos chamar a atenção para as Forças Armadas, que tutelam esse governo e serão responsabilizadas também pela História. Seguramente, os problemas do Brasil não terminam com o governo Bolsonaro nem com as eleições de 2022. 

Nosso desafio é o de construir outro projeto para o Brasil, que tire nossa economia da crise e que resolva os problemas fundamentais do povo brasileiro. E ninguém vai construir sozinho. Assim, temos que pensar a sociedade brasileira, pensar o Brasil como Nação que definitivamente nos inclua. Não existe capitalismo sem racismo, nem antifascismo sem antirracismo.  

Vidas Negras Importam! 

“A opressão racial é como uma síndrome respiratória aguda e grave, pois impede de respirar.” (Sueli Carneiro)

Miguel Otávio Santana da Silva tinha cinco anos e morreu no dia 02 de junho de 2020 após cair do 9º andar de um prédio, no Centro do Recife. Segundo a Polícia Militar, o caso ocorreu às 13h, no Condomínio Píer Maurício de Nassau, conhecido como “Torres Gêmeas”. Miguel era filho único de Mirtes Renata Santana de Souza. Ela trabalhava como empregada doméstica no quinto andar do prédio em que o filho caiu. 

Naquele dia, Mirtes precisou ir trabalhar e levou Miguel com ela. Enquanto a mãe teve que sair para passear com os cachorros a pedido da patroa, Miguel ficou sob a responsabilidade de Sari Gaspar Corte Real (patroa de Mirtes). A criança começou a chorar querendo a mãe e foi deixada por Sari – com extrema insensibilidade e negligência – sozinha em um elevador, com apenas 5 anos. Miguel acabou se perdendo e saiu do elevador no 9° andar. À procura da mãe, o pequeno escalou uma grade e caiu de uma altura de, aproximadamente, 35 metros. Não resistiu.

A vida dele importa e vale muito mais que R$ 20 mil, valor que foi pago por Sari Gaspar de fiança para responder ao processo em liberdade. Mais uma criança negra que perde sua vida de forma vã, por ação ou omissão racista.

João Victor Souza de Carvalho, menino de 13 anos assassinado após perseguição por segurança e gerente da loja Habib’s, em 26 de fevereiro, na Vila Nova Cachoeirinha, Zona Norte de São Paulo. Segundo os funcionários da loja, ele pedia dinheiro aos clientes para comprar comida. 

Então, estamos dizendo, que um menino foi morto porque sentia fome e incomodava os clientes por pedir dinheiro para comprar comida. Ora, o que incomoda a classe média branca não é a fome, tampouco as desigualdades raciais do país. O que ela não suporta é ser molestada, o que não suporta é a nossa presença, e o reflexo da miserabilidade que seus privilégios nos causam.

João Pedro tinha 14 anos quando foi morto pela polícia do Rio de Janeiro. João foi baleado em sua casa e seu corpo foi levado pela polícia do Rio de Janeiro. Sua família esperou 17 horas até receber notícias de seu paradeiro. Finalmente encontraram o corpo de João Pedro no Instituto Médico Legal (IML). A família contou 72 marcas de bala nas paredes da casa. Os policiais dizem que João morreu em um tiroteio iniciado por criminosos. Os vizinhos disseram ser mentira a versão da polícia.

 

Não gosto de helicópteros. Quando eles chegam, as pessoas morrem.

 

A escalada nos assassinatos da polícia ocorre depois que o governador do Rio, Wilson Witzel, prometeu “cavar túmulos” e atirar em criminosos “em suas cabecinhas” para impedir o crime. Sob Witzel, a polícia do Rio realiza ataques frequentes de helicópteros, sempre em bairros pobres.

Como tarefa de casa, uma criança de uma escola local escreveu: “Não gosto de helicópteros. Quando eles chegam, as pessoas morrem”. A pandemia não diminuiu a velocidade da polícia, só piorou a situação. Somente em 2019, a polícia do Rio matou 1.814 pessoas; um recorde de todos os tempos. As vítimas são, principalmente, jovens negros.

Um policial militar pisou no pescoço de mulher negra e arrastou a vítima na Zona Sul da cidade de São Paulo. A comerciante teve ferimentos no rosto, nas costas e quebrou a perna. Ela foi agredida ao tentar defender um amigo, que fora dominado pelo PM e estava imobilizado, no chão. A tíbia da mulher foi quebrada, a perna também, e ela foi arrastada no chão.

Do mesmo jeito que essa mulher negra foi agredida, muitas e muitos outros são, e meses após o afastamento, os PMS voltam à ativa. O caso foi semelhante ao de George Floyd, nos EUA, mas nem por isso ganhou atenção. A vida e a morte de pessoas negras são banalizadas na sociedade brasileira. Vidas negras são banalizadas quando um agente do Estado mata uma pessoa negra, sem que ela esteja apresentando nenhuma ameaça. Há mais de 500 anos que “a carne mais barata do mercado é a carne negra”, cantou a artista brasileira Elza Soares.

Racismo
George Floyd foi asfixiado até a morte por um policial branco, nos EUA. Foto: divulgação.

O assassinato de George Floyd nos EUA deixou muita gente perplexa aqui no Brasil. Um homem negro sufocado até a morte por um policial branco, protestos diários contra a violência policial, a resposta truculenta do presidente Donald Trump, a indignação crescente nas redes sociais. A pergunta que muitos têm se feito é por que a morte de George Floyd provocou tanta comoção entre brancos no Brasil, mas a morte de negros brasileiros não causa. 

Em fevereiro de 2019, Pedro Gonzaga, um negro de 19 anos, foi sufocado pelo segurança de um supermercado no Rio. E não aconteceu nada. Somente os militantes do Movimento Negro foram para as ruas. Onde estavam os brancos? E os brancos perguntam: Por que vocês negros não reagem?  Será que finalmente as pessoas brancas entenderam a gravidade do racismo e o quanto ele pauta a política, a economia e as relações sociais? Não sei não. Penso que é mais uma empatia com os brancos de lá do que com os negros, é porque existe a ideia de que eles estão fazendo alguma coisa. Isso é uma análise de um sentimento que tomou parte das pessoas, mas é importante dizer que existem pessoas brancas que são aliadas fundamentais na luta contra o racismo.

 

É simbólico que um homem negro morra sufocado em meio à pandemia de Covid-19.

Quando um homem branco, a serviço do Estado, assassina brutalmente um homem negro, sob os olhos do mundo inteiro; quando, mais uma vez, incontáveis tiros da polícia terminam com a vida de uma pessoa negra em uma favela; não é mais possível silenciar as vozes que gritam, no Brasil e no mundo: Vidas Negras Importam!  Será que importam? 

É simbólico que um homem negro morra sufocado em meio à pandemia de Covid-19, uma doença que mata dificultando a respiração. Será que é por isso que as pessoas saíram de casa para protestar, por que estão sufocadas? A forma como George Floyd morreu foi pedindo ao Estado opressor para respirar. E chamou pela mãe no meio disso. Um homem que precisava que o Estado oferecesse mais do que violência. Fez pessoas sentirem vergonha por terem permitido que isso acontecesse. 

E no Brasil, por que os brancos não participam das lutas negras? O que é preciso ser feito para desmontar a estrutura cruel e violenta que nega a uma parte da população não apenas as condições materiais de vida, mas a possibilidade de sonhar?

Racismo estrutural: a raiz do genocídio

João Victor, Miguel e João Pedro não são casos isolados no país, representam o rosto de 84 jovens negros mortos cotidianamente. No Brasil, os dados são alarmantes: a cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado. Cento e onze tiros disparados em um carro mata cinco jovens negros que estavam comemorando seu primeiro salário. Família negra é fuzilada com mais de oitenta tiros quando iam para um chá de bebê. Jovem negro sobrevivente consegue fugir de massacre em escola, mas não recebe ajuda, precisa ir sozinho até o hospital com uma fratura exposta. Mulher negra baleada e morta em ação policial tem corpo arrastado pela viatura da polícia por mais de trezentos metros.

Cerca de 71% das pessoas assassinadas no Brasil são negras. Pessoas negras são 2,5 vezes mais vítimas de armas de fogo do que pessoas brancas. Mais de 75% dos mortos pelas polícias brasileiras são negros. Entre 2016 e 2017, o número de quilombolas assassinados cresceu 350%. No Rio de Janeiro, entre 2012 e 2015, 71% dos ataques religiosos registrados foram contra religiões afro-brasileiras.

Em 2020, muitos outros crimes vieram à tona, principalmente de crianças negras que tiveram suas vidas ceifadas pela brutalidade – cada vez mais exposta – da ascensão fascista. 

 

Todas as mães pretas temem pela vida dos seus filhos.

A militância me ensinou que o ódio e a desumanização sobre os corpos negros é tão pesada que nossos jovens chegam muitas vezes com os olhos lacrimejados em casa, não raro, testemunhando que seus colegas brancos e brancas os discriminam, os tratam com indiferença, os maltratam. Escolas estão organizadas e construídas para a exclusão de nossos corpos e culturas. Será que a branquitude continuará a permitir que a mesma educação racista que a forjou, também oriente e estruture a educação de suas crianças?

Todas as mães pretas temem pela vida dos seus filhos, pelo destino deles, pois, as crianças negras são tratadas pelos brancos como adultos. As crianças negras não são sujeitos de infância, aliás, muitas não têm o direito à infância. São assassinadas antes. Os brancos projetam nas crianças tudo aquilo que projetam nos adultos. E os meninos são os mais visados e o alvo das armas de fogo. Os meninos continuam a morrer. Deixa morrer. Esta é a política do Estado genocida. Mas quem controla a indústria de armas?

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Manifestantes na embaixada dos EUA, em Londres. Foto: Daniel Leal – Olivas/AFP

Genocídio é o extermínio deliberado de pessoas motivado por diferenças étnicas, nacionais, raciais, religiosas e, por vezes, sociopolíticas. No Brasil, ele é, sobretudo, resultado do racismo que estrutura o Estado e a própria sociedade, afeta a polícia, as empresas, as instituições políticas e a população como um todo.

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Foto: Geledes

Quando TVs, rádios, jornais e internet noticiam o homicídio de pessoas negras como casos pontuais, deixa-se de informar o contexto e a gravidade do que temos vivido coletivamente. Genocídio é uma palavra forte. Utilizá-la é um passo importante para que a sociedade e os órgãos públicos reconheçam a realidade das pessoas negras no Brasil. E defendam que a negritude, em sua humanidade, tem direito à vida.

Não se trata apenas de números frios quando vemos pela TV ou estampados nos jornais os rostos de nossas crianças mortas, os filhos que nunca mais voltarão; o irmão que se foi, os parentes que nossos filhos nunca conhecerão. Trata-se de uma dor imensurável de famílias pretas, de memórias e palavras amargamente silenciadas.  São nossos filhos e parentes e não apenas uma mera figura de linguagem, mas da condição de nossa existência, pois o princípio da raça atravessa as relações raciais no Brasil e se relaciona com o modo de ser e estar neste mundo, organizando leis e privilégios para corpos brancos e desumanizando todo aquele que a supremacia branca não vê como seu semelhante.

Necropolitica como uma pandemia consentida

O filósofo africano Achille Mbembe argumenta que o capitalismo é a grande justificativa para a utilização da escravidão em larga escala pelos brancos europeus. A utilização do corpo negro como mão de obra escrava durante o colonialismo nas Américas, por um lado produziu uma riqueza astronômica tanto no processo de venda desses corpos quanto da exploração do trabalho produzido pelos mesmos; por outro lado, transformou o negro em objeto que passa pela metamorfose conceitual de homem-mineral, homem-metal e homem-moeda. 

Penso que a escravidão colonial durante cerca de 350 anos, não apenas foi a materialização da acumulação primitiva do Capital (K. Marx), como também engendrou o próprio capitalismo e a riqueza dos países europeus, consequentemente, dos brancos europeus e dos brancos dos países colonizados. Tanto é que homens e mulheres negras descendentes da África tornaram-se cada vez mais objeto, animalizados, destituídos de sua racionalidade e humanidade aos olhos dos colonizadores brancos. 

Tais dispositivos conceituais levaram à justificativa da legitimação da dominação, subjugação e eliminação do corpo de seres humanos de pele escura, especificamente procedentes do continente africano nas respectivas terras para onde foram levados a força para serem escravizados. Ao receber a alcunha de negro pelo colonizador europeu, o africano começa a ser inserido em um estágio de construção de não-ser, não-humanidade e não-racionalidade.

Os confrontos travados ao longo dos dois últimos séculos testemunham a favor de crueldades sem precedentes. Massacres e extermínios são complementares a um poder que busca aperfeiçoar processos vitais. Se antes guerras eram iniciadas a fim de proteger o soberano, na era do biopoder a morte de uns assegura a existência de todos (Foucault, 1999). Essa forma de equivaler vida e morte, encontrada na base do biopoder, explica a emergência de fenômenos como o racismo de Estado.

No Brasil, primeiro foram corpos escravizados, depois corpos encarcerados e agora, como indica o próprio Mbembe, são corpos matáveis.  O que nos interessa aqui, neste momento, são os corpos matáveis pela mão armada do Estado, ou pela negligência dos serviços de saúde, ou pela omissão da medicina e seus operadores, agravados pela crise sanitária diante da pandemia do coronavírus que assola o mundo.  O que nos interessa é a morte provocada pelo Outro, a morte de forma violenta e seletiva. A morte violenta dos corpos tem a ver com a concepção de Foucault, onde o corpo é problematizado a partir das relações de poder, que deixam de ser disciplina para se tornar uma norma, funcionam como uma biopolítica, que permite ao Estado um controle biológico da sociedade e que utiliza instituições como a saúde pública e a educação para controlar os corpos. 

 

A sociedade contemporânea construiu formas muito sofisticadas de dominação.

A biopolítica utiliza do dispositivo do biopoder para dessa forma decidir quais membros da sociedade podem viver e quais devem morrer. Segundo Foucault, o critério utilizado para decidir quem vive e quem morre é o da raça: o racismo passa a ser um dos mecanismos que passam a regular a política dos corpos e da vida, dessa forma beneficiando o grupo racial hegemônico em detrimento do grupo racial indesejado, considerado inferior e que não somente será deixado desprotegido como também pode ser alvo de extermínio pelas mãos do Estado, se este assim o desejar. 

Achille Mbembe argumenta que o conceito de biopoder não é o suficiente para examinar a política da morte em larga escala nos países que atravessaram a experiência colonial. Outros críticos chamam a atenção para o fato de Foucault ter deixado de lado na sua análise a prática do biopoder em terras coloniais. 

Diante disso, é muito importante trazer os aportes conceituais de Mbembe sobre a necropolítica e analisá-los comparativamente ao genocídio da população negra no Brasil, com o foco no extermínio em massa da juventude negra. No passado, nossos corpos foram classificados como a força de trabalho e utilizados como combustível para o desenvolvimento do capitalismo. Um corpo que poderia ser utilizado e descartado assim que se tornasse inútil para ser explorado. Mesmo após o sistema econômico escravagista ter sido extinto, as estratégias de eliminação do corpo negro não cessaram. Hoje, agora, nossos corpos são vistos como ameaça biológica e os sistemas políticos contemporâneos atualizam técnicas coloniais e executam esses mesmos corpos em forma de necropolítica. 

A essa estratégia de exterminar o corpo negro pelo poder soberano de matar do Estado, pela omissão das instituições, pela indiferença da sociedade e silêncio cúmplice dos indivíduos nomeamos de “Deixar Morrer”, elemento central do biopoder que estrutura a sociedade racista brasileira.  Conforme Silvio de Almeida, 

“Os governantes apostam no apagamento do desejo. Antes de governos autoritários e fascistas ascenderem ao poder, o mundo já estava em processo avançado de decomposição. Eles são o resultado dessa falta de horizonte. O desejo se manifesta em pulsão de morte. Uma necropolítica só é possível se houver na sociedade um desejo de morte. Esses líderes são os catalisadores do ódio da sociedade”. (ALMEIDA, O Globo, 2020).  

A sociedade contemporânea construiu formas muito sofisticadas de dominação. A economia e a política estão ligadas à questão do desejo. A construção de um projeto parte da construção de um ideal de eu, mas há um ocultamento das condições materiais, da segurança para se projetar esse ideal. Essa projeção se realiza por meio de uma ação pedagógica permanente e as crianças aprendem isso rapidamente e sempre nos surpreendem. Como seres humanos tão pequenos aprendem rapidamente o que é ser branco e já compreendem o poder que isso lhes confere e passam a discriminar racialmente, mesmo inconscientemente, outras crianças.  Então, lembro que as crianças têm pais e mães, e meio ambiente familiar, mídia, literatura, cinema, escola, ou seja, toda uma estrutura que hierarquiza os corpos e os educa racialmente para “matar” simbolicamente o outro.  

“…trata-se do que se apazigua odiando, mantendo o terror, praticando o alterocídio, isto é, constituindo o outro não como semelhante a si mesmo, mas como objeto intrinsecamente ameaçador, do qual é preciso proteger-se, desfazer-se, ou que, simplesmente, é preciso destruir” (Mbembe, p.26. 2014).

Este racismo estruturante não é apenas conivente com a morte dos jovens e adolescentes negros, ele está na base do sistema de pensamento ocidental, e é letal para que possam estruturar status, prestígio e poder na condição de gozarem dos privilégios da branquitude. Este é o legado pedagógico da “nossa” modernidade tardia, o mundo da necropolitica como uma pandemia consentida

Marielle Franco
Até hoje, quem mandou matar Marielle Franco está impune. Foto: Mídia Ninja/Wikimedia.

Para superar tais processos será necessária uma nova dinâmica social e política que possa estabelecer nossas formas de vida. Para Silvio Almeida, “é preciso construir uma nova economia dos afetos: precisamos de uma cultura que se oponha ao racismo, que coloque em seu centro produções em que a nossa humanidade caiba”. 

Enfim, nossa desobediência civil é sobreviver. Marielle vive!

 

Bibliografia

ALMEIDA, Silvio. Entrevista. Jornal O Globo, 06 de junho de 2020. 

ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo Estrutural. São Paulo. Sueli Carneiro; Pólen, 2019. Coleção Feminismos Plurais.  

ESCOBAR, Núncia Guimarães. GOMES, Mariana Selister. Vidas negras importam! Mas por que precisamos afirmar o óbvio? Fonte: Em Pauta, 06/06/2020. www.sul21.com.br.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: Curso dado no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes. 1999. 

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Tradução de Marta Lança. 2. Ed. Lisboa: Antígona, 2017. 

 


O texto é parte integrante da Revista Tantas-Folhas, edição v.1, n.1 (2020)

Marcos Antonio Cardoso

É militante do Movimento Negro, filósofo e mestre em História Social pela UFMG, pesquisador das Culturas Negras e professor de Introdução à História da África.

5 thoughts on “Racismo e necropolítica: é esta uma pandemia consentida?

  1. Excelente artigo. Precisamos escancarar o genocídio da população negra, principalmente dos jovens. As mortes não podem ser vistas como casos isolados, mas sim como um projeto de poder.

  2. Marcos Cardoso nos apresenta um amplo panorama da asfixiante situação das relações raciais no Brasil e no mundo e mesmo assim suscita espaço de respiro para subversão desse sistema. Ativismo inspirador!

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