TANTAS-FOLHAS
Fabiana Figueiredo

Fabiana Figueiredo: uma humanista a serviço da arte da fotografia


Fabiana Figueiredo
Autorretrato, 1995.
Fabiana Figueiredo nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Dos anos 1980 até recentemente, acompanhou e fotografou as bandas Sepultura, Sexo Explícito, Ozana nas Alturas, Último Número, Divergência Socialista, Ratos de Porão, IRA, Pato Fu, e também shows e gravações de discos autorais de Fernanda Takai e Arnaldo Baptista. Em 1990, foi para São Paulo, onde trabalhou por dez anos como assistente de Nair Benedicto, considerada uma das mais importantes profissionais da fotografia no país. Amiga do poeta Marcelo Dolabela e dos músicos Arnaldo Baptista, Fernanda Takai e John Ulhoa, Fabiana fez fotos para capas de livros e discos desses artistas. Depois de ter seu trabalho reconhecido e premiado, em 2001 mudou-se para a Provence, na França, casou-se com o fotógrafo Pierre Devin, e, lá, criou e segue desenvolvendo projetos de alcance internacional. Esta entrevista, exclusiva para a revista Tantas-Folhas, foi feita por Ronaldo Almeida, jornalista e fotógrafo.
Todas as fotos são de autoria de Fabiana Figueiredo.

 

Como e quando aconteceu seu primeiro clique na cabeça para seguir por essa estrada? Alguma influência de amigos ou de familiares?

Meu interesse pela fotografia vem desde criança, folheando e pesquisando os álbuns familiares que eram bem escassos. Tenho uma única foto bebê e poucas até a idade de 15 anos. Em compensação, minha mãe, mulher linda, foi bastante fotografada. 

A fotografia me ajudou na busca identitária. Meus avós maternos eram imigrantes italianos que chegaram ao Brasil em 1923. Meu avô foi soldado na Primeira Guerra Mundial e enfrentou todos os dramas desse momento sanguinário. Após se instalarem na Baixada Santista e vivenciarem o nascimento de seus nove filhos, voltaram uma única vez à Itália, nos anos 1930. A história da família italiana e os reais motivos de sua vinda ao Brasil nunca foram bem explicados, mas, através de poucas fotos e um documento de baixa do exército do meu avô, consegui descobrir o vilarejo de origem dos meus avós na Calábria, onde estive pela primeira vez em 1989 e retornei em 2002. 

Fabiana Figueiredo
Nelsa Josefina Trombino, mãe de Fabiana Figueiredo. Sartano, novembro, 2002.

O resultado dessas viagens foi a introdução do meu livro Migrances, edição do Centre Régional de la Photographie Nord Pas de Calais, caderno N°26 da Mission Photographique Transmanche MPT, em 2004, sobre os imigrantes e refugiados, resultado dessas guerras modernas em que a comunidade europeia esteve sempre envolvida. A ideia deste livro para a MPT surgiu após minha volta dos Territórios ocupados da Palestina, e achei pertinente começar com a história da minha família e os motivos das migrações. 

 Como se desenvolveu seu envolvimento com a fotografia? É autodidata ou participou de grupos e cursos? 

Desde cedo meu interesse foi História e Geografia. Prestei vestibular para História e Arqueologia, mas acabei aprovada em Comunicação Social, na PUC de BH, em 1982, onde tive meu primeiro contato com o laboratório e as câmeras reflex Pentax disponibilizadas para os alunos. 

Muito rápido, aprendi a revelar e ampliar e fui aprovada na entrevista para ser a monitora do laboratório. Com material e câmeras à disposição comecei a fotografar e a experimentar no quarto escuro. Mas o maior aprendizado foi na N Imagens, com a Nair Benedicto e minha residência no CRP, com Pierre Devin. Continuo aprendendo todos os dias nas viagens para a Missão Rio São Francisco, e conviver com Celso Brandão e sua obra tem sido uma experiência memorável.

Por qual tipo de imagens se interessou primeiro? Família, amigos?

Quando criança, com a câmera de plástico, eram as festinhas e encontros familiares. Na adolescência, e nos primeiros anos na Comunicação na PUC, foram os amigos. Em seguida, as bandas de rock. Obviamente, minhas preocupações éticas se multiplicaram com o amadurecimento e os encontros que tive. Na época, entendi que esse momento do renascimento da juventude nos anos 1980, após muitos anos de ditadura, precisava ser registrado.

 

Educação é liberdade, arte é resistência.

 

Já que você mencionou esse período de obscurantismo de nossa história, quais suas lembranças e como foi para você esse período? 

Nasci em 2 de junho de 1964, em plena instalação do golpe civil-militar. Durante a infância e adolescência, mudando muito de cidades e estados, estudei em diversas escolas públicas. Cresci colocando a mão no peito para cantar o hino nacional antes de entrar para a classe, em frente às fotos dos generais presidentes. Tinha aula de Educação Moral e Cívica. Estive também numa escola das freiras em São Paulo, onde moramos entre 1972 e 1975. Quando não era o hino nacional, eram as rezas e as missas. A minha educação durante a ditadura foi totalmente careta. Os grupos escolares eram verdadeiros quartéis mirins, insuficientes para uma menina cheia de curiosidade como eu era. 

E como você analisa o atual momento do Brasil?

Quem viveu ou tem conhecimento daquele momento nefasto da ditadura militar no Brasil, não pode aceitar o que estamos vivendo atualmente. É uma ameaça à nossa frágil democracia, conquistada com muita luta, principalmente da classe operária.

Para sairmos desse obscurantismo que assola o país, tomado pelas igrejas evangélicas, sem nenhuma cultura, preparo filosófico e religioso que engendrou o país nessa distopia, onde muitos pensam que a terra é plana, só educação de qualidade e verdadeiros projetos pedagógicos podem ajudar a superar esse quadro atual do país. E devem incluir educação ambiental e sexual desde o ensino elementar, que será a base para imaginarmos um futuro possível para nossos filhos e netos. 

Uma boa escola e professores bem preparados são a base de uma sociedade sadia. É a única e sólida herança que podemos ter, pois a educação nos dá discernimento para nossas escolhas e a defesa dos nossos direitos. Não foi à toa que as maiores conquistas da Terceira República, após a Revolução Francesa, em 1789, foi educação obrigatória até os 11 anos de idade, que, nos dias de hoje, se estende aos 16 anos. Naquela época, era comum que filhos de nobres falidos fossem analfabetos. Educação é liberdade, arte é resistência.

Fotografando bandas de rock

Quando e como você começou a se interessar pelo registro de shows de grupos musicais como Sepultura, Sexo Explícito, Ozana nas alturas, Último Número, Divergência Socialista? Teve neste último uma breve participação como vocalista?

O início dos anos 1980 foi o recomeço do sopro de liberdade, depois de muitos anos de ditadura militar, perseguições, torturas, mortes e desaparecimentos. Em 1982, um amigo pintor de Uberlândia, que estudava na Belas Artes da UFMG, me levou um dia ao Canil, um local de encontro com aspirações a centro cultural e bar, onde conheci Rubinho Troll, John Ulhôa, Jair Fonseca, os poetas performáticos Roberto Soares e Roney, José Guilherme – o «Mineiro», que era o dono do espaço –, e tantos outros amigos artistas. O principal deles, amigo e parceiro até a sua morte, foi o poeta Marcelo Dolabela. 

O grupo poético Cemflores já existia e as bandas Sexo Explícito e Último Número estavam no início dos ensaios. Certo dia, Marcelo me chamou pra cantar no Divergência Socialista e topei na hora. Durante algum tempo, cantei no Sexo Explícito também. Esse período foi muito rico, aprendi muito com essa turma, todos cultos e atuantes. 

Em 1981, 1982, já era possível fazer bandas com esses nomes, já tinha música que citava geração coca-cola, índios etc, e falava mal da polícia… Legião Urbana, Barão Vermelho, com Cazuza e suas letras politizadas, já tocavam nas rádios, bem diferente das letras metafóricas que, anteriormente, artistas como Chico Buarque eram obrigados a fazer para enganar a censura da ditadura.

Marcelo Dolabela era um gênio, um poeta potente, extremamente produtivo e diversificado, líder digno de uma geração libertária. Ele foi o mentor intelectual de uma geração e agregou talentos. O Divergência Socialista era a revolução, o minimalismo poético, político e musical de uma ironia ácida e contestadora. Cantar “Cu de comunista”, “Droga de partido”, “Colt 45” e todas as performances que fazíamos mudou a minha forma de ver e interagir com o mundo. 

Marcelo tinha muitos projetos. Um deles era o ABZ do Rock Brasileiro, um dicionário poético musical das bandas brasileiras desde os anos 1950, e achei que ilustrá-lo era uma forma de participar dos acontecimentos da minha geração. Assim, comecei a fotografar todas as bandas que passavam por BH. Quando era possível, viajava também. 

Foi numa dessas viagens a São Paulo, para fotografar um festival de bandas paulistanas que se apresentavam com o objetivo de levantar uma grana para o Teatro Tuca, que havia incendiado, que através do IRA conheci a Sonia Maia, jornalista e editora da parte nacional da revista BIZZ, que, desde esse dia, tornou-se uma amiga inseparável. Foi por meio dela que me tornei correspondente da BIZZ em Minas, conheci o João Gordo e muita gente em Sampa. 

Fotografei as bandas para capas de discos e divulgação na imprensa. Alguns acompanhei por quase duas décadas, como Ratos de Porão, IRA, Pato Fu, Fernanda Takai e Arnaldo Baptista.

Fale sobre o tempo que permaneceu no restaurante Xapuri, em BH

O Xapuri é da minha família, sou sócia, mas não gestora. Foi fundado por meus pais, em 1987, seguindo minha ideia para tentarmos mudar nossa situação econômica da época. Minha mãe, Nelsa Trombino, tocou o restaurante por quase três décadas, mas, agora, está aposentada  e meu irmão, Flávio Trombino, recuperou a sucessão da cozinha. Faço parte do conselho consultivo, mas é o Flávio e sua mulher Júnia quem são os tratores da empresa. Estou muito satisfeita com o trabalho que eles têm feito após a saída da minha mãe – que se transformou em um ícone da culinária brasileira. A partir da vendinha roceira criada pelo meu pai dentro do restaurante, que vendia botas zebus, chicotes rústicos, farinha de moinho e outros produtos, a Fernanda, minha irmã, organizou uma interessante e bem variada loja de arte popular do Brasil.

O Xapuri é um patrimônio cultural do estado de Minas Gerais. Fizemos 33 anos em agosto e pretendemos continuar o máximo que pudermos. Foi extremamente duro e doloroso esses seis meses fechados durante a pandemia, tivemos que demitir muitos funcionários antigos, foi triste, mas resistimos. 

Fale mais sobre a ida para São Paulo e sua amizade com o pessoal dos Mutantes, em especial, com Arnaldo Baptista e Lucinha Barbosa

Quando voltei de Florença, na Itália, onde vivi entre 1988 e 1989, estava bem perdida, não sabia por onde recomeçar. Sempre fui fãnzaça dos Mutantes e dos discos solo do Arnaldo. Pouco depois do meu retorno, Sonia Maia me ligou de SP, estava indo a Juiz de Fora para entrevistar o Arnaldo para a Bizz, após ter vivido anos isolado em um sítio. Fiquei enlouquecida, queria ir junto, mas ela disse que não dava por vários motivos. No seu retorno de Juiz de Fora, veio pra BH e me falou que ele queria voltar aos palcos e precisava de um empresário. Não hesitei. Disse a ela : «Sou a nova empresária do Arnaldo». Trabalhamos juntos durante sete anos. 

Fizemos  muitas ações a respeito de seus direitos autorais, recuperação de obras perdidas, contratação de advogado para rever contratos, relançamento do Singing Alone com a Virgin. Eu era muito jovem e cometi muitos erros, mas valeu cada instante. Arnaldo e Lucinha são minha família, não consigo imaginar minha vida sem eles. A vida dá muitas voltas, hoje, quem cuida dos interesses do Arnaldo é a Sonia Maia, e sempre estive perto deles durante as últimas quatro décadas.

Fabiana Figueiredo
Arnaldo Baptista, do grupo Os Mutantes.

Prêmios

Que importância teve para sua carreira o período em que trabalhou como assistente de Nair Benedicto, em São Paulo?

Vivi em São Paulo quando criança e, em 1987, antes de ir para a Itália, estava louca pra voltar e faltava uma motivação. Sonia Maia me disse : « Vou te apresentar à maior fotógrafa brasileira, a Nair Benedicto, da F4». Dois dias depois, peguei um ônibus com o ABZ do Rock, do Marcelo Dolabela, debaixo do braço e fui até a casa da Nair para conhecê-la e pedir um emprego. Passamos a tarde juntas, a empatia foi total, foi rápido como caminho de pólvora. No final da tarde, ela me falou que estava se separando da F4 e que eu poderia vir a fazer parte da sua nova agência, a N Imagens. Voltei pra BH, embalei minhas poucas coisas, peguei a Kombi do Xapuri e fui pra São Paulo.

Esses dez anos com a Nair foram extremamente formadores. Ela é um furacão ! Por onde passa deixa boas marcas, é muito culta e politizada, lutou ativamente contra os militares, foi presa e torturada em 1969. É uma mulher fora dos padrões, uma trabalhadora incansável, uma fotógrafa disciplinada, competente e inovadora, buscando novas alternativas com excelente conteúdo, o povo brasileiro. 

Trabalhar nos arquivos da Nair e dos fotógrafos da F4 (na separação, metade dos arquivos ficaram na N Imagens), foi um aprendizado riquíssimo. Toda a história do Brasil, desde o fim dos anos 1970, estava lá. Os fotógrafos eram super bons, a qualidade das imagens era absolutamente impecável. Eu me sentia o «cocô do cavalo do bandido», mas foi a maior universidade que eu poderia ter feito. O trabalho de edição era cotidiano e isto foi fundamental pra mim.

Era 1991, fim da F4, início da N Imagens e também das primeiras reuniões do NAFOTO, Núcleo dos Amigos da Fotografia, que organizou, a partir de 1993, o Mês Internacional da Fotografia de São Paulo, que foi uma vasta ocupação de todos os espaços culturais da cidade, com enormes exposições de fotografia brasileira e estrangeira. 

As reuniões do grupo eram no escritório da N Imagens. Foi quando conheci os membros fundadores : Rubens Fernandes Junior, Fausto Chermont, Rosely Nakagawa, Marcos Santilli, Isabel Amado, Eduardo Castanho, Juvenal Pereira e a Stefânia Brill, que faleceu logo após as primeiras reuniões. 

O NAFOTO organizou as primeiras mostras no Brasil de Jacques Henri Lartigue, Bernard Plossu, Robert Doisneau, Marc Riboud, Alain Fleischer, André Kertezs, Joseph Koudelka, Keichi Tahara, Graciela Iturbide, Henri Cartier Bresson, entre tantos outros. 

Realizamos a maior coletiva de fotografia brasileira, com 200 fotógrafos ocupando todo o Sesc Pompéia ; diversas coletivas de argentinos, chilenos, mexicanos, peruanos, japoneses, croatas, entre outros. Fizemos seminários, palestras, leituras de portfólios, centenas de workshops com brasileiros e estrangeiros, uma verdadeira usina de produção de eventos ligados à fotografia. 

Trabalhávamos feito loucos, sem remuneração, para mudar o cenário da fotografia no Brasil. O NAFOTO deu duro para abrir a estrada que temos hoje, com muitos festivais, universidades especializadas, galerias, prêmios, cursos, editoras, Institutos, residências, além da formação de diversos profissionais como monitores, montadores etc. Num país sem memória, é obrigatório reconhecer e ressaltar a importância do NAFOTO para a fotografia brasileira. Pessoalmente, esse grupo representou muito na minha vida e formação.

E a experiência com o Amaury Júnior?

Entre 1995 e 2000 trabalhei para a coluna do Amaury Jr no Diário Popular. No começo, não queria fazer esse trabalho, mas era uma oportunidade de criar uma agenda de clientes, acabei aceitando e foi extremamente importante, pois tinha acesso à alta sociedade de São Paulo e realizei, sob encomenda da Nair, o ensaio “A Noite”, que me legitimou como fotógrafa autora. Com ele, ganhei prêmio na Bienal de Thessalonique, na Grécia, em 2002, fui indicada ao Prêmio Niepce, em 2008, prêmio de muito prestígio na França ; fui selecionada para a coleção Masp Pirelli, Prêmio Aquisição JP Morgan e MAM/SP e CRP. Até hoje, quando vejo esse ensaio me pergunto se fui eu mesma que fiz, sem dúvida o melhor trabalho que realizei, e fico me perguntando se terei de novo esta inspiração e domínio técnico, estético e ético.

Projetos na Europa

Há anos você se mudou para a Europa

Sim. No Mês da Fotografia, em 1997, conheci o curador francês, Pierre Devin, fundador e diretor artístico do CRP – Centre Régional de la Photographie – Nord Pas de Calais,, que era um dos convidados europeus dessa edicão. Ele era bem conhecido internacionalmente pelo seu projeto Mission Photographique Transmanche – MPT, uma reflexão sobre a construção europeia, e o que seria a Europa com a abertura das fronteiras, a transposição das indústrias, a moeda única, a globalização. E a construção do túnel da Mancha era um símbolo muito forte dessa transformação. 

A MPT durou mais de vinte anos, com 27 livros editados. Pierre convidava fotógrafos autores, de linguagens diferentes, para realizarem uma missão específica nesse vasto território. Cada autor tinha liberdade para trabalhar o tema escolhido da maneira que quisesse.

A coleção Transmanche eram cadernos brancos a serem completados, um bom desafio. Participaram muitos fotógrafos, hoje famosos, como Joseph Koudelka, Martin Parr, Bruce Gilden, Bernard Plossu, Lewis Baltz, John Davies, Gabriele Basilico, Jean Pierre Gilson. Vieram também fotógrafos do Norte da França e belgas, como Bernard Joseph, Daniel Michiels, Michel Vanden Eeckoudt, Jacques Vilet, entre outros, e três fotógrafas, a americana Marylin Bridges, conhecida por suas fotos aéreas em meio formato; a francesa Françoise Nuñez ; e eu, com o Cahier N° 26 , Migrances, sobre a questão dos imigrantes e refugiados entre Vallenciennes, Lille, Calais e Dunkerque.

Desde que conheci Pierre, fiquei muito interessada em conseguir uma residência no seu CRP. Ele colaborou muito com o NAFOTO e ficamos amigos. Em 2001 fui para Londres com o Pato Fu. Fernanda Takai e John queriam muito que eu os acompanhasse para a mixagem do álbum Ruído Rosa. Em Londres, peguei um trem e fui para a França negociar com o Pierre a vinda da exposição do fotógrafo Jean Marquis, um clássico francês dos anos 1950 e 1960, fotógrafo da Magnum em seus primórdios  e pupilo de Robert Capa. Fiquei muito surpresa com o acervo, a biblioteca com milhares de exemplares de autor. A produção de livros do CRP continha conteúdos, escolhas estéticas e impressões primorosas. Tudo era de um nível inacreditável. Não entendia como um centro cultural tão pequeno, longe de Paris, no meio de uma região totalmente estigmatizada pelo fim da indústria, das minas, da siderurgia, da metalurgia, com índices enormes de desemprego, alcoolismo, inclusive feminino, suicídio, uma região totalmente esquecida e abandonada por esta nova e super poderosa Europa, poderia ter um pequeno centro cultural com uma produção daquelas.  

O encantamento com o trabalho se uniu ao lado pessoal. Resultado : sou casada com Pierre desde novembro de 2002, fizemos muitos projetos juntos, incluindo a compra de uma fazenda e o replantio de uma grande área da Mata Atlântica na Zona da Mata mineira. Temos uma filha. 

Fundamos, em 2016, o Territoire Sensible, que é uma plataforma na internet para dar visibilidade a diferentes autores e gerar conteúdos que possam proporcionar reflexão, discussão e formação. Nesse projeto, está a Sensible Editions, destinada à publicação de livros e portfolios fine art, às residências aqui na Provence, onde moramos, e a Mission Lance Ventoux.

A primeira a ser constituída foi a Mission Saint Hilaire MSH, em 2012, com Bernardo Brant, da Oficina de Imagens de Belo Horizonte. Depois, sobre este território que vivemos, a Provence, a Mission Lance Ventoux MLV, 2014. Com o fotógrafo e videasta alagoano Celso Brandão criamos, em 2018, a Missão Rio São Francisco – Nos caminhos de Richard Francis Burton MRSF, para colocar em evidência esse território que está bastante ameaçado, principalmente pela mineração predatória em Minas Gerais.

 

Como está o projeto Territoire Sensible nesse momento? 

O Territoire Sensible é um coletivo, uma cooperativa de autores com o desejo de liberdade de criação, acompanhados por um diretor artístico de vasta experiência. Sem subvenções, todos participam e colaboram como podem. Temos todos os tipos de colaboradores, dos que fazem os textos, aos tradutores, designers gráficos, muita gente envolvida. 

O Territoire Sensible é de todos que querem e podem doar tempo para podermos gerar conteúdos significativos. Pierre Devin é o diretor artístico e responsável por mantermos uma linha autoral e editorial de qualidade, com critérios para que os ensaios façam parte das Missões. 

Tudo já foi fotografado e o que pedimos dos autores é estilo, comprometimento com seu discurso e narrativa, seja documental, experimental ou contemporâneo. 

Para nós, o engajamento político é necessário, mas é preciso esclarecer que, em nossa visão, criar o belo e a poesia das formas, com responsabilidade ética e estética, é combater a ignorância. E isto é ato político e exercício da cidadania.

Qualquer forma de reverter a ignorância e o obscurantismo em conhecimento, e viabilizar o aprendizado sobre o mundo através da arte, é o que nos interessa e nos move pra frente.

No nosso site territoiresensible.com estão publicados na Mission Lance Ventoux trabalhos bem formais e poéticos como o de Márcio Távora, a delicadeza de Helena Rios e Flavia Tojal, os grãos de Marcelo Hein, o mistério noturno e nublado de Marcelo Greco, a violência da morte na caça ao javali de Bernardo Dorf ou o mal-estar da sociedade europeia com os coletes amarelos de Tristan Zilberman e Magali Fay, entre outros. Na Missão Rio São Francisco, os trabalhos sociais de Nair Benedicto, as cores do sertão de Fausto Chermont, o preto e branco intenso e perturbador de Celso Brandão, os vídeos de Pedro Amaral e Celso Brandão, meu humanismo minimalista ou o ensaio denúncia de Isis Medeiros sobre o crime ambiental da Vale em Brumadinho.

Algum projeto novo para a pós-pandemia?

Está tudo muito confuso ainda, sem vacina está difícil imaginar como continuar a viajar ou ter contato mais próximo com as pessoas. O lado financeiro também pesou para todos. No momento, estamos publicando no Instagram e no site o projeto Covid-19 2020, trabalhos realizados durante este período que estamos vivendo ou trabalhos que têm muito a ver com a reflexão sobre o encarceramento dos nossos corpos e imaginários. Abrimos a possibilidade para todos que queiram participar, tem médicos que pintam, arquitetos que escrevem, psicanalistas que poetizam, músicos, dançarinos, pintores, artistas visuais. Até mesmo nossa filha adolescente com suas criações na costura e bordados. O Tetine, grupo musical de amigos que vivem em Londres, fizeram um vídeo lindo com trilha musical da Yoko, filha deles, 10 anos de idade, ao violoncelo. Ou seja, estamos abertos a tudo que seja possível para ampliar nossas perspectivas e aproximar as pessoas.

Como vê a produção fotográfica nesse período de pandemia, com a limitação de movimentação para uma atividade que requer campo e circulação?

Acho que tem sido difícil, a máscara virou uma obrigação geral no mundo todo e que deve durar ainda muito tempo e é claro que muda tudo. Temos rostos cobertos, expressões veladas. Será necessário se readaptar a esta nova realidade, que é bem cruel. Mas tudo é fotografável e este registro é importante, como as ruas das metrópoles desertas, o medo, a insegurança e as consequências desta crise econômica. Eu ainda não encontrei meu caminho nesta pandemia, tenho feito autorretratos e coisas simbólicas, mas, confesso : minhas viagens ao baixo São Francisco para encontrar o povo do sertão com meus amigos mais queridos, Nair, Fausto e Celso têm me feito muita falta. Meus amigos são minha riqueza, meu patrimônio. Sem eles, sem nossa troca afetiva e intelectual, ficou tudo muito triste. 

O fotógrafo Rogério Reis afirmou recentemente em uma live que a exigência de se obter autorização de direito de imagem de personagens, tirou muitos fotógrafos da rua e limitou bastante o desenvolvimento natural de uma prática antiga de produção e de imagens externas, espontâneas, de flagrantes, de pessoas, hábitos, costumes etc. 

Realmente, as coisas mudaram muito, não vivemos mais nos tempos de Robert Doisneau, que estava nas ruas de Paris em contato diário com todas as classes sociais, dos anos 1930 até 1970. No seu trabalho, é nítida a interação dos fotografados com o olhar do fotógrafo. Ao mesmo tempo, as pessoas se expõem e se exibem nas redes sociais como nunca, mostrando inclusive intimidades, que me deixam às vezes estupefata. Nunca as pessoas se exibiram tanto, principalmente os ricos e famosos. Há aí duas perversões típicas dos tempos atuais : por um lado, mostrar a intimidade gera popularidade e negócios ; por outro, somos todos  vigiados e controlados por um gigantesco Big Brother, nesse caso, sempre a serviço dos ricos para se tornarem mais ricos.

Fotografia: um fazer ético e estético

A fotografia brasileira, a exemplo da que se faz em países como México e Argentina, possui um histórico de produção bastante respeitado mundialmente, seja documental, jornalístico ou autoral e conceitual. Nomes como Miguel Rio Branco, Rogério Reis, Cláudia Andujar e Nair Benedicto, entre outros, são respeitados e conhecidos. Como você percebe a fotografia brasileira, hoje, fora do país, principalmente na Europa, onde reside ? E o que diz sobre a fotografia brasileira produzida pelas novas gerações? Destacaria alguns nomes?

A fotografia latino-americana é importante e diversificada. Existem referências em cada país. O México tem uma longa e grande tradição na produção artística, os anos 1930 e 1940 foram tão importantes para o mundo quanto os anos 1920, em Paris, com os dadaístas, surrealistas e futuristas. Muita gente passou um tempo no México e produziu muito por lá.

Sebastião Salgado é um caso muito a parte, é uma longa e vasta discussão, ele é o primeiro artista da mundialização e soube se projetar utilizando estrategicamente as ONGs. Ele conseguiu uma popularidade mundial que é única, virou um mito, um superstar, num nível que, talvez, somente Henri Cartier Bresson tenha conseguido. 

Pessoalmente, acho que a obra de Miguel Rio Branco é muito mais interessante, ousada e inovadora, um verdadeiro influenciador. Sua obra é inspiração para todas as gerações contemporâneas, principalmente os que fazem fotografia colorida. Miguel é respeitadíssimo mundo afora, mas muito longe de ter o mesmo estrelato de Salgado. 

Em novembro do ano passado, no Paris Photo, a Taschen fez a bobagem de programar os lançamentos dos livros do Salgado e Rio Branco na mesma hora em stands diferentes, tinha uma fila de 1000 pessoas pra ter uma assinatura de Salgado e uns gatos pingados no lançamento do Rio Branco, uma falha terrível da Taschen e extremamente injusta com Rio Branco, que merecia maior consideração do público e da própria editora. 

Claudia Andujar, Maureen Bisilliat e Nair Benedicto são as três fotógrafas citadas no livro The Women Photographers, da historiadora americana Naomi  Rosenblum, desde a edição dos anos 1990. Elas sempre foram referência para os estrangeiros quando se fala sobre fotografia brasileira.

Rogério Reis fez parte da F4 e fundou a agência Tyba no Rio de Janeiro. Está na ativa faz tempo, com trabalhos impactantes como o carnaval na lona, e também é referência para muitos curadores internacionais.

São poucos nomes que vejo circular aqui na França, existem curadores estrangeiros especializados e interessados no Brasil e na América Latina, mas ainda é muito pouco. 

Há vários brasileiros que conseguem entrar em bienais, festivais e galerias, que ganham prêmios internacionais. Porém, no nível de Claudia Andujar, com exposição na Fundation Cartier; Celso Brandão na Maison Européenne de la Photographie ; Tiago Santana, que tem um Photo Poche ; Mário Cravo Neto ; e Miguel Rio Branco, que é muito conhecido aqui, são poucos os que conseguem realmente um lugar ao sol. 

A fotografia brasileira é riquíssima, temos um leque variado de estilos e, com certeza, mereceria maior reconhecimento e interesse.

Hoje em dia, o material disponível é muito grande para estudos e pesquisa. Existem universidades, escolas e  cursos, sem falar que a quantidade de festivais aumentou, a publicação de fotolivros é muito mais facilitada com os novos processos digitais de impressão. Agora é possível um jovem ter acesso ao conhecimento da arte fotográfica muito maior que nos anos 1980, quando comecei. Ou seja, a rapaziada de hoje está muito ligada e informada e, com talento e determinação, é possível que façam excelentes trabalhos. 

Vivemos sob um bombardeamento imagético cotidiano. Sem aprendizado e discussão sobre o que vemos, fica difícil separar o que é bom do que é medíocre.

 

A questão da fotografia, como em qualquer expressão artística, é criar um estilo pessoal, onde ética e estética estejam conectadas com um mundo em movimento constante. Uma fotografia que seja compreensível a ponto de habitar o inconsciente coletivo. 

Acho que existem também muitos mitos, muita gente boa no anonimato total ou que são pouco conhecidos. Talento e genialidade não tem nada a ver com as regras do mercado de arte, e pouquíssimos fotógrafos no mundo inteiro vivem de seus trabalhos autorais.

 

O fotojornalismo e a documentação são imprescindíveis

 

Estou fora do Brasil há vinte anos, não tenho acompanhado de perto todas as novas editoras, tem fotolivro sendo lançado todo dia, o que não quer dizer que são todos bons. 

O frenesi contemporâneo é um pouco demolidor do pessoal que faz ensaios documentais, que estou sempre defendendo nas convocatórias onde sou convidada como jurada. Fotografia não é somente conceito. Os ensaios documentais na história da fotografia foram fundamentais para mudar a opinião pública sobre alguns fatos, como a visão que os norte-americanos tinham sobre a guerra do Vietnã, por exemplo. O fotojornalismo e a documentação são imprescindíveis.

Hoje temos muitos fotolivros com projetos gráficos mirabolantes, tudo muito moderno, mas o que interessa mesmo é o conteúdo, pois, se você não tem o que dizer é papel jogado fora. 

Para se fazer um livro que resista ao tempo e ao espaço é necessário uma grande reflexão, uma boa edição do material, sequência de fotos bem estudada, diálogo entre as páginas duplas, capa e contra capa pertinente, um texto que amplie o valor das próprias fotos. 

O livro é o verdadeiro espaço para a fotografia, desde a sua invenção. Ao contrário das exposições que são efêmeras, o livro é capaz de resistir e viajar mais fácil pelo mundo. Por isto, deve ser bem elaborado.

Temos vários festivais de fotografia no Brasil, entre eles, o de Tiradentes, tido por alguns fotógrafos como o mais importante. Você acrescenta algo à constatação de que são bastante agregadores ao universo de fotógrafos, estudiosos, curadores, admiradores, mercado fine art?

Fui convidada para participar das edições 2007e 2008 do Paraty em Foco ; e da primeira edição do Fotosururu em Maceió, em 2019, para lançar nossa Missão Rio São Francisco com uma belíssima exposição na Fundação Pierre Chalita. 

O importante dos festivais, além do aprendizado com palestras, workshops, exposições e leituras de portfólios, é o intercâmbio ente autores e curadores. Por isso, é fundamental que eles sejam extremamente democráticos, pois é importante criar possibilidades de oportunidades para todos. Em Paraty, além de ter de pagar o valor dos cursos, os preços de pousadas e restaurantes eram bem salgados. 

As convocatórias são importantes, permite que o trabalho de pessoas desconhecidas circule entre o público e os curadores presentes, sejam nacionais ou estrangeiros. Foi assim que, em 1994, no seminário organizado pela NAFOTO, que o curador britânico Mark Sealy conheceu o trabalho de Eustáquio Neves, até então desconhecido, publicou o seu primeiro catálogo e o levou para uma residência de dois meses em Londres. Com este catálogo em mãos, as portas não pararam de se abrir para ele. Depois, fez a residência em Houston, exposição do CRP de Pierre Devin, e só decolou. 

Durante o 3° Mês da Fotografia do NAFOTO, em 1997, conheci o Pierre, fiz minha residência no CRP e acabei propondo e realizando o meu livro Migrances, única monografia que tenho e este livro é muito importante para mim. Infelizmente, as guerras não param de pipocar e os refugiados não param de chegar, as histórias são as mais tristes possíveis, como os que morrem afogados tentando chegar por aqui, incluindo muitas crianças. 

Desde 2004, o CRP realiza exposições de fotos minhas em escolas e centros culturais aqui na França. Em 2018, participei da Paysages Français, uma coletiva na Bibliothéque Nationale de France, com 200 fotógrafos. Os festivais são importantíssimos. 

Acredito que o Festival de Tiradentes seja bem interessante, e, desde os encontros de Arles, no Sul da França, vimos que essas pequenas cidades históricas são perfeitas para esse tipo de evento, pois tornam mais fácil o encontro entre as pessoas, apesar de não facilitar a realização de grandes e preciosas exposições pela falta de espaço, instituições, salas climatizadas e adequadas a receber material delicado, o que era o caso de Paraty e, imagino, seja o caso em Tiradentes. 

A educação, assim como a cultura precisam de políticas específicas e investimentos pesados. Uma exposição bem montada custa muito caro e, sem interesse por parte dos políticos e sem reivindicações da nossa parte, avançaremos muito devagar.

 

A fotografia nos humaniza.

 

Como você define o seu trabalho? 

Me defino como fotógrafa humanista, onde a figura humana é o interesse principal, incluindo eu mesma com autorretratos. Todas as ações do ser humano e suas consequências, sejam elas boas ou ruins, definem o mundo e o estado de espírito das civilizações. A fotografia é capaz de causar todos os tipos de reações e sentimentos. Medo, revolta, alegria. 

Fabiana Figueiredo
Autorretrato com Sônia Maia. Fabiana Figueiredo está à direita na foto.

Neste exato momento, estamos sofrendo ao ver as imagens da Amazônia e do Pantanal em chamas, nos revoltamos com a criminalização dos movimentos sociais e a violência da polícia e do poder, das guerras, do ódio entre os povos. E nos encantamos com fotos da natureza, dos animais, das crianças, do amor. 

Num universo neoliberal, onde o individualismo prevalece, a fotografia nos humaniza. 

Nesse sentido, lembro aqui um poema do Marcelo Dolabela.

o voto vale pela vida das pessoas
o voto vale pelo amor pela igualdade
o voto vale por escolas para todos
o voto vale por justiça e dignidade

o voto vale pela fauna da floresta
o voto vale pelo sol da liberdade
o voto vale pela terra pra plantar
o voto vale pelo canto da verdade

o voto vale o alimento da fraternidade
o voto vale pela força da saúde
o voto vale a cor da diversidade
o voto vale pela paz pela cidade

o voto vale pela arte do respeito
o voto vale pela fé na felicidade.

 


O texto é parte integrante da Revista Tantas-Folhas, edição v.1, n.1 (2020)

Ronaldo Almeida

Nascido em 1952, em Guarani, Zona da Mata, onde voltou a residir há sete anos, graduou-se em Comunicação Social pela PUC RJ, em 1981. Em Belo Horizonte, foi repórter de Economia, Agropecuária e Cultura do Jornal Hoje em Dia e do Departamento de Comunicação da Emater-MG; produtor da TV Manchete e freelancer de publicações de Minas, São Paulo e outros estados. Sua paixão pela fotografia começou cedo com uma câmera Olimpus Trip de seu pai. A partir daí, não parou mais de fotografar. Recebeu menções honrosas em concursos na Espanha e Colômbia, participou de coletivas na PUC RJ, festival Foto em Pauta, de Tiradentes; Sesc Minas e no Festival de Fotografia de Juiz de Fora. Há dez anos direciona seu trabalho fotográfico para cobertura de eventos corporativos.

4 thoughts on “Fabiana Figueiredo: uma humanista a serviço da arte da fotografia

  1. Gostei muito da entrevista com a Fabiana Figueiredo. Ela é realmente genial na arte da fotografia e faz um depoimento muito pertinente sobre a fotografia, o circuito artístico e o posicionamento poético e politico do artista no momento atual.

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