TANTAS-FOLHAS
Diário do Lula

Diário do Lula: artista argentino cria mural em cidade alemã | Conexão Alemanha


Diário do Lula
Foto: Nacho Doce/Reuters.

Curitiba, Brasil

Querido Diário,

Hoje completam 532 dias preso. Tenho a obsessão de desmascarar o juiz Moro. 

Eu posso ficar 100 anos preso, mas não troco minha dignidade pela minha liberdade. 

Eu quero provar a farsa montada que impediu minha participação nas eleições para presidente. 

Não só as liberdades estão sendo ameaçadas, também a Amazônia, refém das perversões desse governo. 

Eu vou sair daqui com a cabeça erguida como quando entrei, inocente! Acredito na construção de um mundo melhor, de um mundo de justiça.  

Sem medo de ser feliz.

Lula (21/09/2019)


Quem passeia pelo animado bairro de Ehrenfeld, na cidade alemã de Colônia, com suas ruas multiculturais cheias de cafés, bares e discotecas, se depara na altura da Lichtstraße com o “Diário do Lula”, pintado na fachada de um edifício. 

O diário fictício do ex-presidente brasileiro foi criado pelo artista multidisciplinar argentino Tec Fase, baseado em trechos de cartas escritas por Lula e entrevistas concedidas por ele durante a sua última prisão. O pintor cordobês, que vive no Brasil há oito anos, produziu o mural em setembro de 2019, no âmbito do Festival de Arte Urbana CityLeaks, que a cada dois anos convida artistas alemães e do resto do mundo para transformar as fachadas de prédios e muros colonianos em obras de arte. Ehrenfeld é um dos lugares com maior concentração de murais e grafites em Colônia.

Diário do Lula
Foto: Adriana Nunes.

A intenção de Tec, que vê na sua arte uma possibilidade de ressignificar o espaço público, promovendo assim transformações sociais, foi mostrar no exterior uma outra perspectiva da história brasileira recente e da prisão do ex-presidente Lula, distinta da narrativa predominante na grande mídia.

Conhecido internacionalmente pela mostra “De Dentro e de Fora”, realizada em 2011 no Museu de Arte de São Paulo (Masp), Tec já expôs suas obras em várias metrópoles, como Buenos Aires, Colônia, Berlim, Barcelona, Nova Iorque, Washington e Seul. Em São Paulo, criou um dos maiores murais da cidade num edifício da rua Amaral Gurgel, perto do Minhocão. 

Seus desenhos pintados no asfalto das ladeiras paulistanas fazem uso da perspectiva à distância, inovando a forma de fruição da arte urbana.  Os gigantescos peixes, lagartos, figuras humanas, pipas e outros personagens só podem ser entendidos a partir de uma inclinação apropriada, o que se constitui em um desafio instigante para o observador. 

A combinação de suportes e técnicas é a marca do trabalho do artista, que explora a ambiguidade dos espaços públicos e privados da arte através de métodos distintos como a intervenção performática, instalação de site-specific e filmagem de ação. 

Em novembro deste ano, por e-mail, Tec deu uma entrevista exclusiva à Revista Tantas-Folhas sobre sua intervenção na Alemanha.

Lula
Foto: Adriana Nunes.

Qual foi sua intenção ao pintar o “Diário do Lula”? 

Há algum tempo que venho incluindo a política no conceito das minhas obras. Fui testemunha de todo o processo que levou o Lula à prisão e quis aproveitar a oportunidade de fazer um mural fora do Brasil, para jogar luz sobre os acontecimentos que levaram o país à situação dramática, na qual está mergulhado hoje em dia.

De onde vêm as citações compiladas no mural?

As citações foram tiradas de trechos das cartas escritas pelo Lula na prisão e publicados pela sua equipe no twitter e Instagram do ex-presidente.

Você também produziu um vídeo sobre o mural. Que técnicas utilizou?

Usei um drone. A utilização do drone como ferramenta de registro visual faz parte do meu trabalho desde 2015. A partir daquele ano, todas as minhas intervenções urbanas estão acompanhadas por um vídeo-drone, geralmente com uma música que acrescenta conceitualmente algo à obra. (veja o vídeo aqui)

Como foram as reações ao mural em Colônia?

Aprendi muito conversando com meus vizinhos em Ehrenfeld e as demais pessoas que ali transitavam. Percebi que pouca gente conhecia o Lula, e quase ninguém sabia da sua prisão. Naquele momento, a mídia internacional divulgava sobretudo os problemas trágicos que assolavam a Amazônia. Através das notícias, os alemães tomavam conhecimento do atual presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, mas pouco aprendiam sobre a história política brasileira dos últimos anos. Nesse sentido, foi bom fazer o mural para esclarecer como a nova administração do país chegou até onde está atualmente.

Como os alemães com quem você interagiu avaliaram na época a prisão do Lula?

Os alemães com quem interagi tinham pouco conhecimento da história do Lula. Aqueles que sabiam da sua prisão remetiam à questão da corrupção. Os debates da América Latina e do Brasil, numa perspectiva Norte-Sul, não são aprofundados pela mídia internacional. Há historicamente uma desigualdade no fluxo internacional de informações. Apenas questões mais universais e de interesse da política e economia internacional, e não particulares, ganham espaço. 

O Lula tomou conhecimento do mural? 

Não que eu saiba, embora tenha sido postado nas redes sociais do Instituto Lula.

Você é argentino de Córdoba. Como avalia o momento político atual no Brasil, em comparação com o seu país?

A América Latina passa por um momento muito delicado, as consequências das políticas atuais do Brasil já são visíveis. O novo governo argentino assumiu há pouco tempo e, logo depois, veio a pandemia, portanto é cedo para tirar alguma conclusão. A crise provocada pelo governo anterior na Argentina foi devastadora.

Que impacto político e social a arte urbana pode ter?

A capacidade da arte de sintetizar o seu próprio tempo, seja a partir de seus pressupostos estéticos, seja a partir da experiência social, ativada tanto pelo artista como pelas relações que ele estabelece com os outros seres humanos com quem compartilha o contexto histórico, faz dela um instrumento revelador de contradições. A street art em sua essência tem compromisso estético e exterioriza a relação orgânica do artista com seu espaço.  O grafite abarca a crítica, que lhe confere o status de arte transformadora da percepção. 

Se você pudesse desejar algo para o povo brasileiro atualmente, o que você desejaria?

Um país sem memória está destinado a repetir o seu passado. Por isso, faz-se necessário construir uma postura crítica e reflexiva da realidade. 

Diário do Lula
Foto: Adriana Nunes.

Galeria de obras do artista Tec Fase

Adriana Nunes

Adriana Nunes estudou Jornalismo na Universidade de Brasília e Germanística, Romanística e Ciências do Teatro, Televisão e Cinema na Universidade de Colônia. Foi redatora da equipe brasileira da rádio Deutsche Welle e editora da Könemann Verlag. Contribuiu como autora e tradutora para vários outros meios de comunicação e editoras alemãs.

9 thoughts on “Diário do Lula: artista argentino cria mural em cidade alemã | Conexão Alemanha

  1. Ótima reportagem de Adriana Nunes. Mostra a importância da arte urbana usada como dispositivo para discutir a politica contemporânea. Achei muito interessante também a perspectiva que o artista Tec usou para pintar o mural na fachada do prédio!!!

      1. A sensibilidade de Adriana Nunes em sua escrita e nas fotografias permite uma melhor apreensão da genial intervenção do artista argentino.

  2. A reportagem da jornalista Adriana Nunes é inteligentíssima, pois ela combina a divulgação da arte de rua na cidade de Colônia com a divulgação da história recente do Brasil na Alemanha. E sua reportagem não divulga qualquer ato trivial da história do Brasil, mas o diário de um personagem popular como o ex-presidente Lula. Desta forma não só quebra a hegemonia dos grandes grupos de comunicação mundial no ato da narrativa do que querem informar para atender seus interesses hegemônicos, mas forma e informa a população alemã ao trazer a verdade dos fatos históricos recentes do Brasil. Belíssima reportagem, que alia compromisso com os excluídos e invisibilizados, possui sensibilidade e elegância no ato de escrever um fato nas ruas da cidade de Colonia, divulga a arte, mostra a história e assim aproxima a população trabalhadora de dois povos (o alemão e o brasileiro) e não só as suas respectivas elites. Parabéns; que venham outras reportagens interessantíssimas.

  3. Maravilhoso resultado de arte de rua com sua estética e agudeza política aliada a capacidade comunicativa de um bom jornalismo. É do que precisamos mais e mais em um mundo que disputa narrativas.

Comentários