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POESIA LIVRE – Um depoimento de Guilherme Mansur | ladoBeagá


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Acervo Poesia Livre.

A publicação POESIA LIVRE circulou nos anos 1970/1980 pelo Brasil, no tempo da autocomplacente poesia dita “marginal”. Deixo aqui um breve depoimento.

Inventei a revista-objeto (gosto de chamá-la assim) POESIA LIVRE, em 1977. Eu tinha 19 anos e trabalhava na Gráfica Ouro Preto, dos meus pais, onde sempre que dava, costumava datilografar numa velha Remington alguma poesia. A ideia, no entanto, seria editar esses poemas, mas não “solo” num livro e sim num espaço repartido entre parceiros. Ah, sim, e tudo composto com tipos móveis, de acordo com o meu trabalho na tipografia naquela época.

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Composição de tipos. Foto: Zig Koch.

O pulo do gato veio em seguida: tive a ideia descendo a Rua das Escadinhas com um saco de papel pardo de 1/2kg contendo cocadas compradas na Padaria Popular, no Largo da Alegria. Ali, no meio da ladeira, estava definida a embalagem do meu produto: um saco pardo. (Gozado, como as ideias definitivas às vezes saem em momentos os mais prosaicos…).  Para a impressão pensei no papel kraft 90kg, cuja resma tinha um preço bem acessível e era muito usado na gráfica. Como sempre fui atento à estética, reuni dois suportes da mesma cor e texturas toscas: saco pardo de padaria e lâminas soltas de papel kraft no formato do saco: 10 x 25cm.

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Acervo Poesia Livre.

O nome POESIA LIVRE escolhi a reboque de uma frase redundante de Rimbaud – Je méntête affreusement à adorer la liberté libre (“Estou loucamente determinado a adorar a liberdade livre”). De “liberdade livre” para “poesia livre” bastou um salto com a redundância mantida. Conheci a poesia do enfant terrible quando comprei “Une saison en enfer” (“Uma estadia no inferno”), ainda em 1977, livro indicado pelo jornalista Angelo Oswaldo, que acabara de chegar a Ouro Preto para assumir a Secretaria de Turismo e Cultura. A edição, ainda daquele ano, era da Civilização Brasileira, e o livro foi traduzido pelo poeta Ivo Barroso. Alguns anos depois, chegamos a brincar com uma das capas de POESIA LIVRE, cortando a letra L. Deu-se então o nome POESIA IVRE (poesia bêbada), numa apropriação do título do famoso poema Le bateau ivre (O barco bêbado), do próprio Rimbaud.

 O escultor Amilcar de Castro foi outra referência que tive na condução de POESIA LIVRE. Amilcar, então professor na Faop, me deu vários toques sobre composição e diagramação, coisa que dominava por inteira. Muito do que me disse Amilcar, reencontrei lendo um livro sobre o artista, poeta e tipógrafo alemão Kurt Schwitters. Kurtipógrafo – como o chamo – publicou Thesen über typographie (Teses sobre tipografia) em 1925, um texto numerado contendo 10 itens que me serviram como norte entre as caixas de tipos. Kurt escreveu: “Em termos tipográficos, os segmentos textualmente negativos (áreas não impressas do papel impresso) são valores positivos”. (Em 2012, nos 90 anos da Semana de Arte Moderna, editei essas teses no cartazete “Kurtipógrafo” em papel kraft 40kg, com tradução de Simone Homem de Mello).

 Mas, ainda naquele mesmo 1977, tive o prazer de conhecer o artista Cildo Meireles, que veio participar de um evento na Fundação de Arte de Ouro Preto. Entre outras obras, Cildo projetou slides da exposição “Casos de Sacos”, que havia montado um ano antes em Cuiabá. Tratava-se da relação entre peso e volumes: o peso se mantinha, o volume variava  (um saco de 10kg dentro de 5kg dentro de 3kg dentro de 2kg dentro de 1kg dentro de 1/2kg). Mostrei ao Cildo a publicação que acabávamos de fazer e ele se interessou e levou um tanto de POESIA LIVRE para distribuir entre alguns poetas de Brasília, cidade em que morava na época.

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Acervo Poesia Livre.

 Voltemos à gráfica. Com a revista já idealizada, reuni alguns amigos interessados (Jáder Barroso, Tatu Penna, Petrus e Vandico) e conseguimos algum apoio financeiro do comércio local para pagar papel e tinta, já que a mão de obra era por minha conta. Assim, saiu o primeiro número e um tanto foi posto à venda nas duas bancas de revistas que existiam na cidade, e outro tanto de sacos etiquetei e postei para uma lista de jornalistas de cultura e para poetas e escritores e artistas espalhados pelo Brasil.

POESIA LIVRE 2, além de contar com o grupo inicial, foi acrescida dos colaboradores Célio Inácio, Marisa Steffanio, Ronaldo Mourão e Romério Rômulo, todos de Ouro Preto. Os números seguintes foram se enchendo de novos colaboradores, entre os quais Miriam Ayres, Roberto Resende e Baltazar. Em setembro de 1980, Ouro Preto foi declarada pela Unesco como patrimônio mundial – o primeiro bem cultural brasileiro inscrito na Lista do Patrimônio Mundial –, e justo naquele momento em que os olhos da cultura no Brasil estavam voltados para Ouro Preto e seria interessante revitalizar a cidade com uma publicação contemporânea genuinamente ouro-pretana, POESIA LIVRE tinha se mandado para Belo Horizonte, onde esteve por dois anos aos cuidados da editora Caminho Novo – dirigida por Regis Gonçalves e Otávio Ramos –, instalada dentro da agência R&V.

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Acervo Poesia Livre.

Seguimos então, eu (pois em momento algum larguei o osso), Regis e Otávio editando POESIA LIVRE. A Caminho Novo deu um impulso publicitário à nossa publicação e ela tornou-se conhecida pelo público amante da poesia de todo o país, ao passo que se tivesse permanecido em Ouro Preto, naturalmente seria da mesma forma conhecida, porém, num ritmo mais lento. O fato é que, uma vez aberto o leque (ah, moleque!), começou a chover colaboração de tudo quanto é canto sobre a mesa do Regis.

Por essa experiência na Capital sou imensamente agradecido ao Regis e ao Otávio, que morreu há 15 anos. Até sua morte, mantive uma amizade com o Otávio, coisa que venho mantendo com o Regis. Em matéria de edição, aprendi muito com ambos e tive um crescimento notável como editor. No início de maio de 1982, POESIA LIVRE voltaria para casa e permaneceria editada por mim e Otávio Ramos até o último número em 1985. Nesse retorno, retomei então as rédeas tipográficas e a publicação voltou a ser composta com tipos móveis, que essa era a linguagem gráfica de POESIA LIVRE.

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Primavera, 1985. Este foi o último saquinho de Poesia Livre. Foto: acervo do autor.

Parágrafo para que o leitor entenda geograficamente o quanto de telúrico existia acerca da nossa oficina tipográfica que estava instalada no Pilar, local conhecido também como “Fundo de Ouro Preto”. A poucos metros da gráfica, a Igreja do Pilar. Em diversos momentos do dia, o som do dobrar dos ferros das velhas impressoras Minerva fundiam-se com o som do dobrar e desdobrar do bronze de Jerônimo, o grande sino da Igreja. Era o barroco ali atuando no espaço-tempo: “Pli selon pli” (dobra sobre dobra). “Para Deleuze, o Barroco é aquilo que faz dobras no objeto estético, seja ele um texto escrito, uma música, uma roupa, uma casa, uma igreja, um quadro etc. Tudo que é barroco é dobrado.” (“A aurora das dobras – introdução à barroquidade poética de Affonso Ávila”, Anelito de Oliveira, Inmensa, 2013). Atrás da gráfica existia um ferreiro com o batuque diário na bigorna e, toda segunda-feira, dia regido pelo orixá Exu, dava para se ouvir um afro-batuque gostoso vindo de algum canto ali no entorno. Como o casarão da gráfica está na esquina de uma encruzilhada, não raro aparecia um trabalho de macumba ali naquela encruza. POESIA LIVRE, portanto, era imprensa em meio a um sarapatel de batuques (de sino, de prensa, de bigorna, de preto) e crenças.

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Foto: Zig Koch.

Sobre a Gráfica Ouro Preto algumas palavras de Régis Bonvicino, num depoimento em 2018 ao Caderno Pensar, do jornal Estado de Minas: “Conheci Guilherme Mansur no início dos anos 1990. Fui a Ouro Preto visitá-lo e conhecer sua oficina tipográfica, que me lembra a Factory, de Andy Warhol, com todas as diferenças conceituais”. O rigoroso Décio Pignatari também cravou em sua coluna na Folha de São Paulo, em 1982: “POESIA LIVRE é uma das poucas publicações contemporâneas de poesia que leio com algum interesse”. Hoje, passados 43 anos desde a sua invenção, vejo que POESIA LIVRE ainda é copiada, plagiada e homenageada. 

 

Galeria POESIA LIVRE

 

   

Guilherme Mansur

Poeta, tipógrafo e editor, nasceu em Ouro Preto. Descendente do proto-tipógrafo português Manuel José Barbosa - que instalou a primeira oficina tipográfica de Minas Gerais, em 1823 -, vem mantendo a tradição familiar das letras através da tipografia e poesia. Publicou os livros “Bahia Baleia”, “Bandeiras – territórios imaginários”, “Haicavalígrafos”, “Bené Blake” e “Barrocobeat”, entre outros. Poeta que pratica uma poesia desdobrável (que costuma fugir do plano do papel), é autor do poema-instalação “Quadriláxia” e do poema-objeto “B de Brossa”, além de fazer regulares chuvas de poesia das torres das igrejas de Ouro Preto.

16 thoughts on “POESIA LIVRE – Um depoimento de Guilherme Mansur | ladoBeagá

  1. Fiquei emocionado com a leitura dessas palavras do Guilherme Mansur, pois o saquinho de poemas me fez muito bem e deixou saudades… Abraços, Guilherme !
    Do Paulinho Pavaneli.

  2. Adorei o depoimento.
    Tive a alegria de ser publicada em alguns números, poemas que
    me foram reavivados pela pesquisadora Ana Paula Dakota que tem se debruçado nesse estudo/levantamento da “Poesia Livre”.

  3. Maravilha!!! Coisas de Guilherme Mansur!!! Se não existisse teriam que inventar! Mas que tal reinventar? E depois virar biografia, web serie… Bjs, Gui ❤💐

  4. Com a maior alegria ajudei o Régis e o Otávio a vender o PL por BH, e principalmente na Usimec, onde eu trabalhava na época. Tb por ter sido um dos colaboradores, em vários números. Me orgulho de ter conhecido o GM de perto (até fizemos parte de uma Comissão Julgadora do Prêmio Minas de Cultura, certa época). E ano passado, pra minha surpresa, Ana Paula Dakota me falou de sua tese de mestrado: passei pra ela todos os PL que tinha e tb o cartaz composto por ele, com ilustra do Wolney. GM é o próprio “barroco atuando no espaço-tempo”, no “Pli selon pli” dos sinos de Vila Rica, e os que ainda dobram por quem as esquinas dobram (como dizia MTCosta). E tudo que é barroco é desdobrável! Salve, mestre Mansur!!! (Barreto)

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