TANTAS-FOLHAS
Paulo Freire

Um lança-chamas chamado Paulo Freire


Paulo Freire
Fonte: OutrasPalavras, Acervo O Globo.

Paulo Freire faz 100 anos em 2021, e apesar de não constar oficialmente em boa parte dos currículos escolares, seu pensamento segue orientando inúmeros educadores em todo o planeta. Todavia, há setores da nossa sociedade que desejam extirpá-lo da educação brasileira e consideram seu legado um atraso nos tempos em que vivemos. Mas que tempos são esses?  Em 2018, ainda no período de sua campanha à presidência da república, Jair Bolsonaro declarou que usaria um lança-chamas para queimar e retirar os simpatizantes do patrono da educação brasileira, Paulo Freire, do Ministério da Educação. 

Na verdade, o então candidato revelava ali sua intenção de romper com as garantias constitucionais do direito à educação e sua intolerância com as políticas desenvolvidas nos governos do campo democrático e popular que buscavam romper com as desigualdades entre os indivíduos e garantir uma margem satisfatória de liberdade e de vida. Essa provocativa sugestão toma forma e efetividade com a eleição de Bolsonaro e vai se materializando  nos sucessivos cortes orçamentários, aqueles provenientes da aprovação  do teto de gastos aprovado pela Emenda Constitucional 95/2016 , e as inúmeras tentativas de acabar com o FUNDEB; na precarização do salário dos professores; nas tentativas de abolir as cotas étnico-raciais e sociais; na repressão e militarização das escolas; na perseguição às universidades e à pesquisa; e na revisão dos processos escolares para combater uma suposta  “ideologização nas escolas”.  

Em 2020, com o advento da pandemia do Covid 19, delineia-se de forma contundente   um projeto político que busca introduzir inovações tecnológicas nas maneiras de legitimar a desumanização e industrialização da morte [1],  articulando racismo (extermínio das populações indígenas, quilombolas e genocídio da juventude negra), machismo (feminicídio das mulheres e população LGBTQIA+) e suicídio (negação da Ciência). Em geral, trata-se da produção de narrativas que legitimam a crença na inviabilidade do ser humano e, portanto, naturalizam o enxugamento das políticas sociais e o ataque aos direitos humanos, bem como fazem parecer natural a expropriação do trabalho e a destruição máxima de pessoas. 

 

Na contracorrente do recrudescimento dos ideários de segregação racial e social, ele reafirma o compromisso com uma educação para a liberdade, uma educação para a emancipação social. 

 

Mas com efeito, em que medida o pensamento de Paulo Freire confronta os ideários da política em curso no país? No vasto universo da obra freiriana quero me deter em dois aspectos, que me parecem bem contundentes. O primeiro aspecto diz respeito ao reconhecimento dos diferentes sujeitos, como sujeitos de direitos. Para o autor, a construção da ideia da educação como direito está aliada ao reconhecimento da vocação ontológica do homem ser sujeito. Assim, em decorrência da nossa incompletude, a educação é quase que uma imposição para nossa incessante busca por transformação e emancipação.  Assim é que na contracorrente do recrudescimento dos ideários de segregação racial e social, ele reafirma o compromisso com uma educação para a liberdade, uma educação para a emancipação social.  

Vejamos que Paulo Freire, em sua obra Pedagogia do Oprimido, afirma:  “… se nada ficar destas páginas, algo, pelo menos, esperamos que permaneça: nossa confiança no povo. Nossa fé nos homens e na criação de um mundo em que seja menos difícil amar”. E em seu livro Educação como Prática da Liberdade, defende uma pedagogia que comece pelo diálogo e permita ao povo a elaboração de uma consciência crítica do mundo em que vive. Na formulação de Bell Hooks, o pensamento freiriano propõe as bases para a construção de uma educação humanista – antirracista, antissexista, anti-homofóbica, dentre outras – que reconheça as peculiaridades do indivíduo e que garanta a voz dos estudantes. Uma educação que seja capaz de estimular o senso crítico e avançar para uma prática que liberte as minorias da opressão.

Ora, pensar em libertar as minorias da opressão é uma proposta educativa inaceitável para forças políticas que objetivam a retomada da servidão e a alienação do povo e da sociedade. Em nosso país, a negação da humanidade de negros, indígenas, quilombolas, camponeses, ribeirinhos, ciganos, favelados foi a justificativa ideológica usada pelas classes dominantes para legitimar a sua escravidão e espoliação. “A humanização enquanto vocação tem, na desumanização, sua distorção” (FREIRE, 1994, p. 184), e é por isso que as propostas educativas que dialogam com esses sujeitos de direitos, de modo a valorizar a sua história, cultura, iniciativas e saberes na construção dos projetos políticos pedagógicos têm sido brutalmente atacadas na atualidade por bolsonaristas. Os bolsonaristas, ao proporem uma educação tecnicista e conservadora, com traços marcantes de fundamentalismo religioso, buscam livrar-se do pensamento de Paulo Freire, pois para eles a educação crítica não apenas é inaceitável, como também é um perigo.  O que significa negar e lutar contra as consequências do racismo, do machismo e do patrimonialismo institucional em todas as suas esferas; assim como pelo direito à expressão autêntica dos corpos. 

O segundo aspecto a ser destacado em Paulo Freire é a compreensão da educação como um ato político, de cultura, “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens educam entre si, mediatizados pelo mundo. ” Assim, é na relação com o outro, com a sociedade, na leitura do mundo é que indagamos e decidimos sobre a vida e o mundo que queremos. Reconhecer todas as pessoas como produtoras de cultura é valorizar as memórias, os valores, saberes, racionalidade e epistemologias do povo, contrapondo-se à lógica autoritária de silenciamento de uns para garantir a dominação de outros. Resumindo, significa pensar uma educação plural, comprometida a lutar por um país efetivamente democrático e dedicado à redução profunda de suas desigualdades e de suas lógicas autoritárias. O bolsonarismo, tal como tem se apresentado, é um fenômeno conectado ao nosso passado escravocrata e fruto de um modelo econômico excludente. Nesse sentido, é evidente que uma agenda de radicalização da democracia e da república, tal como presente no pensamento de Paulo Freire, será fortemente combatida por eles, uma vez que querem manter seus privilégios. 

Para nós, professores, o pensamento freireano nos permite alargar nossa capacidade de análise dos contornos do Estado, das políticas públicas educacionais e seus mecanismos de reprodução na atual conjuntura política. Seu exemplo ao se dedicar à educação popular, a mobilização dos círculos de cultura e articulação dos movimentos populares pode nos guiar na luta contra o projeto privatista, neoliberal, e fascistizante em curso no país. A potência das ideias freireanas seguem presentes nas lutas por uma escola pública plural, democrática, gratuita, laica e de qualidade em contraposição às propostas de constrangimento da liberdade de pesquisa, Leis da Mordaça e Escola sem Partido. 

Paulo Freire

Caminhamos na defesa do Direito à Educação, da Juventude Negra Viva em contraposição a propostas que redesenham sistemas de controle social racializados, tais como expressos em projetos de leis e políticas que objetivam a flexibilização do Estatuto do Desarmamento; a redução da maioridade penal; a liberação da intervenção militar em vilas e favelas; na militarização das escolas. As ideias de Paulo Freire são sempre um apelo para aqueles preocupados em compreender os sistemas de opressão presentes na sociedade e nos chama a atenção de que “[…] os lares e as escolas, primárias, médias e universitárias, que não existem no ar, mas no tempo e no espaço, não podem escapar às influências das condições objetivas estruturais […]”. Aos intelectuais, dá um exemplo em um trecho do vídeo O Educador da Liberdade , ao afirmar: – “Eu sou um intelectual que não tem medo de ser amoroso. Amo as gentes e amo o mundo. E é porque amo as pessoas e amo o mundo que eu brigo para que a justiça social se implante antes da caridade.” 

 

Eu ouvi alguém falar em lança-chamas? 

Eu prefiro Djonga:

 “Sensação, sensacional 

Firma, firma, firma

Fogo nos racista!”

 

Bibliografia

FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Porto: Afrontamento, 1974.

_________. Cartas a Cristina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994

 

Notas

[1] MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018. p.21.

 

O texto é parte integrante da Revista Tantas-Folhas, edição v.2, n.2 (2021)


 

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Macae Evaristo

Professora e Assistente Social. Mestre e doutoranda em Educação pela UFMG. Foi secretária municipal (2005 a 2012) e estadual (2015 a 2018) de Educação. Foi titular da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão do Ministério da Educação (2013 – 2014). Atualmente é vereadora em Belo Horizonte pelo Partido dos Trabalhadores.

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