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Minhas sete vezes com Caetano | Máquina de escrever


Caetano Veloso
Caetano Veloso e Jovino Machado. Othon Palace Hotel, Belo Horizonte (1992). Foto: Ricardo Moebos.

Eu tinha muitos sonhos quando era menino do interior e morava em Montes Claros, nos anos 1980. Ver o mar, viajar de avião e assistir a um show do Caetano eram os meus principais desejos naquela época. A folhinha dizia setembro de 1982 quando fiquei sabendo pelos jornais que o baiano iria estrear o show Cores Nomes, no Mineirinho, em Belo Horizonte. Telefonei para a minha avó materna, que na época morava na capital mineira, e pedi para comprar o meu ingresso. Um dia antes do evento, peguei o trem com um largo sorriso no rosto. É muito bom viajar em busca de um sonho. É incrível viajar para realizar um grande desejo. A canção “Queixa” estava na novela das seis e era um imenso sucesso. Eu sabia cada verso na ponta da língua, mas o que eu mais queria era ouvir “Sampa”, que é a minha preferida.

Chegou o grande dia e meu coração de poeta era só felicidade. O Mineirinho estava lotado e a plateia visivelmente ansiosa. Minha alma quase saiu voando quando A outra banda da terra entrou no palco e começou a tocar os primeiros acordes de “Cavaleiro de Jorge”. Caetano tinha quarenta anos, era bem magro e lindo (ainda é). Sua entrada foi uma das coisas mais emocionantes que tive a felicidade de ver na vida. Ele estava sem camisa, com o chapéu da foto da capa do disco, colares de várias cores e um sorriso que naquele momento iluminava a vida de todas as pessoas que já estavam enfeitiçadas pelo carisma e pela grande arte do baiano.

 Depois de “Cavaleiro de Jorge”, ele apresentou “Queixa”, “Ele me deu um beijo na boca”, “Trem das cores” (todo mundo dizia na época que ele havia feito para a Sônia Braga, numa viagem de trem), “Sete mil vezes”, “Sina”, “Meu bem, meu mal”, “Coqueiro de Itapuã”, “Sonhos”, “Surpresa”, “Gênesis” e “Sampa”, que eu tanto queria ouvir. Cantou também outros sucessos da carreira, mas quando a galera percebeu que o show estava no fim, começou um imenso coral a pedir “Terra”. Caetano disse que fazia muito tempo que não cantava a canção sobre as fotos da terra, que ele viu numa revista quando estava na prisão, na ditadura militar, no final dos anos 1960. Acho que ele não queria cantar, mas cantou lindamente. O público fez um novo coral e se emocionou bastante. Foi arrebatador, épico, lírico e romântico. No final, o espetáculo foi encerrado com “Um canto de afoxé para o Bloco do Ilê”. Nesse momento, o filho de Dona Canô começou a beijar na boca de todos os músicos. Vinícius Cantuária, que na época era o baterista da banda, não quis saber do carinho e virou a cara. Caê apenas sorriu.

 Na segunda vez que tive a felicidade de ver o pai de Moreno, eu já estava morando em Belo Horizonte. A folhinha dizia 1988. O show, que aconteceu no Palácio das Artes, foi o Caetano, do disco homônimo, lançado no ano anterior. Um grande acontecimento. Fui assistir junto com minha mãe, que também era muito tiete do filho de Santo Amaro. Dançamos, gritamos, aplaudimos, choramos e jogamos beijos sem fim no Grande Teatro. Depois de tantos anos, é difícil descrever a emoção de ver o meu ídolo cantando “José” (aquela que fala do anjo torto do Carlos), “Giulietta Masina” (que ele fez em homenagem à grande atriz italiana, mulher do Fellini), a tristíssima “Noite de Hotel” e “Eu sou neguinha”, que ele cantou rebolando, rebolando e rebolando com uma sensualidade que arrebatou e arrepiou a todos. 

Não sei como consegui entrar no camarim, que tinha dois homens imensos na porta. Mas entrei, com um monte de poemas dentro de um envelope para entregar para o astro da noite. O lugar estava superlotado e todos queriam fotos e autógrafos. Fiquei num cantinho esperando a galera vazar. Quando Caetano ficou praticamente sozinho, cheguei bem perto e disse: “Não quero autógrafo, mas quero um abraço”. Ele sorriu e disse: “É melhor mesmo”. Nos abraçamos e nos beijamos no rosto. Naquele momento, o beijo poderia ter sido na boca, mas não foi. Caê tinha nas mãos uma fotografia onde ele estava com uma blusa de gola rolê, ao lado da cantora Aracy de Almeida. Olhei a foto e ele me disse: “Olha como eu fico bonito de preto”. Não fiquei nem um pouco encabulado, entreguei pra ele o envelope e disse: “Agora que o Drummond morreu, você é o maior poeta brasileiro vivo”. Narcisista, não sei se ele gostou de ouvir o que eu disse, mas precisava dizer isso, pois estava muito triste com a morte do poeta de Itabira e aquele breve encontro com o baiano, de alguma forma me deixava menos tristonho por nunca ter encontrado o autor do “Poema de sete faces”.

 A folhinha dizia 1989 e Caetano lançou Estrangeiro, um dos grandes trabalhos de sua carreira. Eu já estava completamente louco pra ver o show. Só de olhar a capa do LP com aquela pintura que serviu de cenário para a peça O Rei da Vela, do Teatro Oficina, eu não conseguia me conter de tanta ansiedade. Mas finalmente chegou o grande dia e o irmão de Maria Bethânia entrou no palco do MinasCentro com uma capa colorida feita por um artista japonês da vanguarda da época. A plateia veio abaixo com os primeiros versos de “Alegria, alegria”. Foi uma noite de sonho e saímos todos pela noite belo-horizontina “caminhando contra o vento ” e procurando um bar para molhar o bico, por que um espetáculo assim, na verdade, só termina muito tempo depois, mas fica registrado para sempre no fundo do fundo do fundo do peito. Depois disso, vi o Estrangeiro mais duas vezes no Palácio das Artes, e todas as emoções voltaram como um sonho num filme de Glauber Rocha.

(Jovino Machado presenteia Caetano Veloso com sapatinhos de lã tricotados por sua mãe. Othon Palace Hotel, Belo Horizonte (1992). Foto: Ricardo Moebos.)

Circuladô foi lançado em 1991, e logo depois o show chegou a BH. A grande expectativa era ouvir uma parte de um poema do Haroldo de Campos. O autor de “Tigresa” teve influência do Concretismo e já havia musicado o poema “Pulsar”, do também concreto Augusto de Campos. Foi simplesmente lindo. E mais bonito ainda foi ouvir “Fora da ordem”, que só poderia ter sido feita por um grande poeta da canção. Nessa época, me parece que o Brasil já tinha saído do esquema de “show churrascaria” e os grandes nomes contratavam talentosos figurinistas e cenógrafos. Com Circuladô não foi diferente e a identidade visual do espetáculo era deslumbrante. Sem falar em shows durante muitos anos, Caê estava se sentindo em casa, citou Drummond, Dorival, homenageou o filho Zeca, que tinha acabado de nascer e transbordou em simpatia e carisma. Uma hora antes desse acontecimento, eu estava com alguns amigos no Othon Palace, esperando o autor de Verdade tropical. O hotel tinha duas portas e a gente ficava tentando adivinhar em qual delas Caetano ia aparecer. Nessa época, minha mãe fazia uns sapatinhos de lã para crianças. O segundo filho do baiano tinha nascido e ela me deu um presentinho para ser a cereja do bolo da tietagem. O presente foi entregue numa caixinha transparente para comover o cantor. A caixinha é essa que está na mão dele na foto que ilustra essa crônica. Com uma ternura encantadora, ele sorriu, aceitou o presente, posou para várias fotos e saiu para o show. Caetano tinha 50 anos nessa data. Eu tinha 29. Quando ele já estava quase na Afonso Pena, gritei: “Caê, o cartão do presente”. Ele se virou, pegou o envelope, colocou no bolso do paletó e novamente sorriu.

 A folhinha dizia 1993 e a grande novidade no meio musical era o lançamento do LP Tropicália 2, de Caetano e Gilberto Gil, comemorando os 25 anos do movimento. Nos anos 1960, Tom Zé, Mutantes, Torquato Neto, Hélio Oiticica, Zé Celso e Glauber também participaram do acontecimento. O show ocorreu num espaço aberto da capital mineira. Foi nesse trabalho que conhecemos “Desde que o samba é samba”, “Cinema Novo” e a impactante “Haiti”, canção muito atual nesse Brasil cada vez mais racista, que mata sem piedade a juventude negra. Para ser sincero, tenho poucas lembranças dessa noite, mas foi inesquecível ouvir o Gil, com suas sandálias de couro, cantando “Flora”, que é umas das duas ou três canções que ele disse ter feito pra ganhar mulher. Aí me lembro que ele fez “Sandra”, homenageando um monte de musas.

 Minha sexta vez com o bardo do interior da Bahia e do mundo, foi no show Prenda Minha. Foi bonito ver Caetano cantar “Meditação”, do maestro soberano Antônio Brasileiro de Almeida Jobim. Ele estava bem elétrico nesse show. Cantou “Odara” dançando como um Mick Jagger em chamas. E também “Drão” e “Saudosismo”. Foi a gota d’agua que eu precisava para me derreter em lágrimas, pensando nas dores de amor. Na época, fiz um monte de fotos que ainda guardo naqueles álbuns de papelão.

 No dia 3 de agosto de 2013, estava comemorando meu aniversário de 50 anos na loja da Elvira Matilde, na Savassi. Teve desfile de roupas da grife com meus poemas, recital, música de Chico Buarque e muita cerveja. Estava marcado para o dia 4, no projeto Natura Musical, um show do marido de Paulinha, na Praça da Estação. Espalhei pra todos os meus amigos que Caetano ia cantar a canção “Leãozinho”, em minha homenagem. E ele cantou mesmo. Ele não sabia que estava cantando pra mim, mas cantou. Emocionante demais. Um grande presente para comemorar meio século de vida. Resumo da ópera: é claro que não foram somente sete vezes, porque no final das contas, teve vários shows que vi mais de uma vez. E foram muitas emoções. O João Gilberto, vi só uma vez. O Tom Jobim também. O Chico, seis vezes. O Caetano, perdi a conta e isso é imperdoável para um louco metódico como eu, que tem a mania de fazer listas de shows, filmes e livros.

 


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Jovino Machado

Jovino Antônio Rabelo Machado nasceu no dia 03 de agosto de 1963, em Formiga (MG). Foi criado em Montes Claros e vive em Belo Horizonte. Publicou poemas nos periódicos: Suplemento Literário de Minas Gerais, Caderno Pensar, Rascunho, Cândido, Poesia Sempre, Cem Flores, Jararaca Alegre, A Parada, Dez Faces, entre outros. Publicou mais de vinte livros e livretos. Em 2015 participou da prestigiada Coleção Leve um Livro e reuniu toda a sua obra no volume Sobras Completas. Atualmente escreve resenhas literárias para o site Dom Total. Lançou recentemente o livro A Trilogia do Álcool, Impressões de Minas (2021). Ver mais em Bibliografia Jovino Machado 

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