TANTAS-FOLHAS

Alexandre Magno e o lirismo dos anos 1980 | Máquina de escrever


Jovino Machado
Centro Cultural Hermes de Paula, 1984. Da esq. para a dir.: Déo Costa, Raquel Mendonça, o dramaturgo Plínio Marcos, o poeta Jovino Machado, Mauro Lúcio, Alexandre Magno. Foto: arquivo do autor.

A folhinha dizia 1979. Eu tinha 16 anos e os exilados voltaram. Nosso conterrâneo Darcy Ribeiro voltou um pouco antes. A Ditadura Militar permitiu que ele voltasse porque estava doente. Ao lado do amigo Leonel Brizola, o autor de Maíra foi a Montes Claros participar de um ato político a favor da democracia. Eu estava lá na primeira fila do cinema, mas no momento não assistia aos mocinhos e bandidos do cinema norte-americano. Naquele acontecimento histórico estavam diante de mim dois grandes personagens da esquerda brasileira. Ainda era garoto e não estava entendendo muito as coisas, mas depois entendi. Na verdade, era tão criança que perguntei para o gênio o qual se dizia ex-mineiro: “O senhor transou com as índias?”

A folhinha dizia 1980 e poucos. A cidade norte-mineira já tinha o Conservatório Lorenzo Fernandes e o Centro Cultural Hermes de Paula, que ficava em frente à Praça da Matriz – palco de quase todas as minhas aventuras com o poeta que vai entrar em cena no próximo parágrafo. A antiga “Formiga” tinha 12 grupos de teatro, um bardo em cada esquina, os artistas plásticos, os artesãos, a Academia de Letras de Montes Claros, o Cineclube, os músicos, as bailarinas, os blocos de carnaval, os grupos de capoeira, as academias de arte marcial, os festivais da canção, os shows no campo do “Cassimiro de Abreu”, a Feira de Arte, o Transa poética, o Grupo Tapuia e as musas. Aroldo Pereira já incendiava a cena artística com a sua irreverência e o Espaço de Prática Poética. Ele era a antena da moçada. Foi nessa época que conheci Godofredo Guedes, Raymundo Colares, Marcelo Godoy, Amelina Chaves, Juca Silva Neto, Liz Xavier, Jorge Emil, Cândido Canela, Estevim Barbosa, Fatel, Pedro Boi, Charles Boavista, Biolla, Walmir Alexandre, Renilson Durães, Gabriel Cardoso, Gegê Donato, Egydio Medeiros, Cori Gonzaga, Cacá, Dayse, Antonina, Arthur Gonzaga, Jason de Morais, Elthomar Santoro Júnior e outros fantasmas que ficaram perdidos em algum lugar bonito do século passado. Todos os nomes citados conviveram de alguma forma com o Alexandre que dá título a esta narrativa.

 

Não tive o prazer de dividir com Alexandre uns cigarrinhos de maconha nos anos de chumbo, mas brindamos nossas vidas com vinho Chapinha e pão sírio.

 

Os anos 1980 foram os de desbunde da minha geração. Uma geração exagerada. A geração Cazuza. A geração All Star. A geração desbundada que vivia os últimos anos de uma moribunda ditadura que agonizava respirando por aparelhos. Existia censura e nossas peças de teatro, que eram enviadas a Brasília, voltavam com cortes e algumas eram proibidas para menores de 18 amores. O nosso maior desejo era assistir os filmes “O último tango em Paris” e “Laranja mecânica”. O uso de drogas era violentamente reprimido pelos cachorros do governo, mas mesmo assim a gente dava um jeitinho de fumar uns baseadinhos e tomar chá de cogumelo que os amigos buscavam na serra, depois da chuva azul. Se a nossa desobediência civil nos permitia quebrar certas regras, era totalmente impossível ver as obras de arte proibidas pelos generais de plantão. Usar drogas, aparecer pelado numa peça teatral ou escrever poemas com palavrões eram atos políticos. Foi nesse cenário de transgressão e lirismo que conheci o Alexandre Magno de Aquino Duarte.

Não tive o prazer de dividir com Alexandre uns cigarrinhos de maconha nos anos de chumbo, mas brindamos nossas vidas com vinho Chapinha e pão sírio. O suco de cevada e cachaça com cravo e mel ou soda limonada eram as nossas preferências nos encontros com os escritores que sempre nos deixavam embriagados. Eram eles Drummond, Cecília, João Cabral, Bandeira, Clarice, Rimbaud, Pessoa, Baudelaire e tantos outros culpados que nos empurraram para a terceira margem do rio. Nos nossos recitais cada poeta da turma mostrava seus primeiros versos. Eram poemas ingênuos, experimentais e descartáveis como papel higiênico. Aos 20 anos todo mundo escreve poesia. E foi naquela praça encantadora, debaixo dos ipês amarelos, que Magno me mostrou os seus primeiros escritos. Era a época da Poesia Marginal ou Poesia Mimeógrafo. Já nesse período o poeta de Mirabela se destacava entre os pares, porque seus poemas tinham ritmo e estilo próprios. E todo mundo sabe que estilo em arte é tudo.

Nossa vida era uma festa. Com Alexandre passei noites e dias conversando sobre os sonhos de juventude. A gente ainda tinha um futuro. Éramos do Partido Anarquista Romântico e fazíamos serenatas para as namoradas. Éramos da Esquerda Festiva, os amores eram platônicos e a gente roubava flores que eram deixadas debaixo de janelas das casas onde moravam as amadas. Me lembro perfeitamente de um aniversário dele que comemoramos comendo pizza e ouvindo jazz. Levei de presente pra ele o livro “As flores do mal”, do nosso demônio francês preferido. Depois disso vivemos experiências incríveis. Comemos feijão tropeiro com o dramaturgo Plínio Marcos, bebemos cerveja com Beto Guedes e ficamos muito tempo na porta de um hotel para ver a Bruna Lombardi. Em 1985, o querido companheiro lançou seu primeiro livro. Eu não dei as caras no lançamento. Estávamos brigados. A gente se amava, mas também brigava. Depois, nos abraçávamos e ficava tudo bem.

No início de 1986, fui embora da terra de Cyro dos Anjos e perdi o contato com o Alexandre Magno. Trinta anos depois, nos reencontramos nas redes sociais. Foi o início de uma nova amizade, relembrando a nossa linda juventude e falando muito da grande necessidade de reinventar as utopias. Meu querido amigo se formou em Teologia, se tornou um grande fotógrafo e combinamos que ele faria as fotos para um futuro livro meu. Infelizmente, não foi possível o nosso reencontro. Em 2017, ele ficou doente de câncer e começou a escrever uma espécie de diário da dor, relatando a sua luta contra a doença, no Facebook. Passei a ler todos os dias os seus registros de lágrimas, pequenas alegrias e grandes esperanças. No início de 2018 sua luta chegou ao fim. É muito provável que eu estava sambando bêbado num bloco de carnaval, no momento que ele virou estrela. Nessas trapaças da sorte, ele me deixou de herança a doce filha Rebecca e a Janaina-mulher-ninfa-circe, que desfila no filme dourado dos meus sonhos, como as bacantes desfilam na carruagem florida, alimentando de prazer e amor os delírios e fantasias do deus Dionísio. Foi-se o inverno. É primavera e o tempo é de semear e sonhar. “A vida é sonho”.


O texto é parte integrante da Revista Tantas-Folhas, edição v.1, n.1 (2020)

Jovino Machado

Jovino Antônio Rabelo Machado nasceu no dia 03 de agosto de 1963, em Formiga (MG). Foi criado em Montes Claros e vive em Belo Horizonte. Publicou poemas nos periódicos: Suplemento Literário de Minas Gerais, Caderno Pensar, Rascunho, Cândido, Poesia Sempre, Cem Flores, Jararaca Alegre, A Parada, Dez Faces, entre outros. Publicou mais de vinte livros e livretos. Em 2015 participou da prestigiada Coleção Leve um Livro e reuniu toda a sua obra no volume Sobras Completas. Atualmente escreve resenhas literárias para o site Dom Total. Lançou recentemente o livro A Trilogia do Álcool, Impressões de Minas (2021). Ver mais em Bibliografia Jovino Machado 

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