Glauber Rocha e a poesia concreta: Poetamenos, poeta-a-mais
Em 1955, na capital da Bahia, o adolescente Glauber Rocha participou da criação de um grupo de “teatralização poética”, cujos espetáculos foram chamados de Jogralescas, nomeando-se também o grupo que agitaria a cena cultural da cidade. Naquele momento, o interesse do jovem artista pela poesia e literatura, tão grande quanto pelo cinema, abriu caminho para o futuro cineasta, pois a “dramatização” de textos poéticos seria também o laboratório em que Glauber começou a exercer a direção artística e a experimentar a mise-en-scène, tão necessárias ao seu vindouro cinema de poesia. Acrescente-se que ele, quando criança, escreveu peças de teatro e um balé. Ou seja, seus escritos já visavam ir além das páginas escritas e demandavam corpos com voz e movimento.
Como muitos leitores de poesia, Glauber escrevia poemas. E o mesmo impulso que lhe permitiu revolucionar e superar a velha prática da “declamação” de versos, o levou a considerar um tipo de poesia que marcou a sua época: a poesia concreta. Com seu gosto pelo barroco, o artista quando jovem já dominava a retórica, como arte da fala, embora algo diferenciaria a oratória ruibarbosiana, tradicionalmente conhecida no Brasil, do hábil uso torrencial do verbo que caracterizaria o cineasta. É preciso reconhecer que a retórica de Glauber tem substância e visceralidade, e é mais uma forma de agitação poética, um modo de dar corpo à perplexidade, às certezas e incertezas políticas, culturais e existenciais, através das palavras.
Sua retórica é um pensar-falar-agir, tudo ao mesmo tempo. Daí, não admira que ele fosse paradoxalmente fascinado pela contenção da poesia concreta, por seu caráter verbivocovisual a proclamar a crise do discurso verbal, e pelo brilho radical do novo, de que ela era o arauto artístico, na década de 1950, junto com a bossa nova e o cinema novo. É que o artista ainda colegial, como experimentador de poesia, já tinha consciência de que esta não é retórica. Ou seja, a poesia, mesmo “em estado de palavra” (como dizia Glauber), não tem como objetivo primeiro convencer alguém de algo, mas visa ser algo: um ser de linguagem.
Poesia de cinema
A marca da poesia concreta está em alguns poemas que o cineasta nunca publicou, mas estão no livro póstumo Poemas eskolhidos, que reúne alguns poucos textos, sendo vários deles inacabados. Como aponta Régis Bonvicino, numa resenha, os poemas do personagem de Terra em Transe são diferentes dos poemas do livro de Glauber: o primeiro é “discursivo, condoreiro e épico” e o segundo é “lírico e mais conciso”, sendo que o poeta e crítico percebe também o caráter experimental dessas “anotações poéticas” que aproxima algumas delas do poema concreto. (BONVICINO, 1989). Mas a melhor, mais forte e primeira impressão dessa marca concretista provavelmente está em Pátio, seu primeiro filme completo, curta-metragem feito em 1958/59, justamente quando a realização cinematográfica passa a ser o principal objetivo do jovem crítico, literato e “jogralesco”.
Em Pátio, temos a poesia não apenas como seu assunto, mas, num sentido mais preciso de tema, enquanto seu princípio estruturador e núcleo mobilizador, através de figuras ou tipos humanos, como veremos adiante. A poesia é tão importante na obra de Glauber, que não lhe basta tratar do tema poeta/poesia em seus filmes, mas também dar a eles um tratamento poético, e mesmo poemático, e a figurar neles o poeta ou sua voz, como se verá em três dos mais importantes de seus longas-metragens: Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), Terra em Transe (1967) e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969). Para o cineasta, é preciso tanto criar correspondências quanto marcar diferenças entre linguagens e artes diversas.
Cinema de poesia
Considerado por Glauber como experiência formalista, Pátio não apresenta falas, nem tem exatamente uma narrativa, e sua música concreta e eletrônica serve a uma realização plástica e cinematográfica construtivista, até certo ponto. Junto às afinidades estruturais entre o filme e o arquitexto da poesia concreta, ou seja, não entre o curta e um poema específico, interessa considerar que o diretor identifica as duas únicas figuras humanas do filme como poetas: “Ele está de calça preta, sem camisa, um poeta toma sol no pátio. Ela, de saia e blusa, a poetisa toma sol no pátio.” (ROCHA, 1981, p. 299). Tal espaço é um grande tabuleiro de xadrez, no qual os poetas surgem como peças do jogo que procura conter, por força da geometria, os corpos desejantes do casal a se mexer pelo chão, em busca de contato.
Trata-se de realizar o jogo erótico na arte, de jogar com suas possibilidades e limites, mesmo de brincar com estes, pois, para além do pátio quadriculado em preto e branco, que contém os corpos da dupla, vê-se o horizonte oceânico, como uma outra superfície e dimensão, uma vasta linha de fuga que não pode ser detida. Entre o mar e o pátio, folhas de bananeiras ao vento e, num irônico momento de informalidade e informalismo, o poeta urina sobre as plantas do jardim. Assim, percebemos que o primeiro filme de Glauber já apresenta a irreverência anarcoconstrutivista que marcará toda sua obra, cujas realizações artísticas mesclam em seu projeto estético o cuidado formal construtivo e a desconstrução informalista.
A imagem dos poetas como peças de um jogo faz com que estes sejam considerados não simplesmente como produtores de poesia, mas também como produtos dela, ou, ainda, como resultado da própria imaginação poética estendida ao imaginário social sobre o poeta e a poesia. Explicando mais: a poesia consegue determinar uma certa imagem de poeta e mesmo participar de sua criação. Ou seja, o poeta surge como fonte imaginada da poesia, não é apenas fonte criadora de poemas. Tanto que no filme não há poema verbal, muito menos há palavras, e nele nada indica que as personagens sejam poetas, como informa o supracitado comentário posterior do cineasta, externo ao filme. Por outro lado, as imagens dos poetas, em geral, também correspondem ou não aos estereótipos que se criam e se veiculam socialmente sobre eles, a partir das leituras que são feitas de suas obras e em relação aos lugares estabelecidos para se projetarem tais imagens. Ou seja, o poeta, essa abstração generalizadora, existe como fonte imaginada da poesia, mesmo quando se refere a um determinado autor empírico, a uma pessoa concreta que escreve versos.
Ainda que teorias críticas de poesia mais ou menos recentes se baseiem no questionamento da categoria de autor, como no célebre ensaio “A morte do autor”, de Roland Barthes, a imagem de poeta que se tem, implícita ou explicitamente, é importante na constituição da imagem geral e abstrata de um “eu lírico”, um “sujeito poético”, uma “voz poética” – sempre imaginados, posto que indissociáveis dos poemas e mesmo de dados biográficos acerca do autor, capaz de sempre retornar como imagem, depois de morto, ou seja, como fantasma. De todo modo, é a partir do poema que tal imagem de poeta corresponde ou não às expectativas que temos sobre seu lugar no nosso imaginário particular e social. Para tentar ajustar e definir essa imagem é que voltamos sempre à fonte do poema, que, por sua vez, se torna um rio heraclitiano, sempre outro, sempre capaz de oferecer uma nova face de si mesmo, dependendo da leitura que se tenha, a cada vez que esta ocorra.
Quantomais poetamenos
Interessava aos poetas concretos a poesia objetiva, de palavras-coisas, caracterizada por um Poetamenos, segundo Augusto de Campos, sendo este o título do livro que podemos considerar como seu primeiro trabalho concreto, publicado em 1953, sendo que a palavra “poetamenos” estaria também num poema de 1982, intitulado “Dizer”. Com isso, podemos perceber a relativização da subjetividade ou personalidade do poeta, e assim seria interessante pensar Pátio como um mestiço filme concreto, pós-existencialista e pré-tropicalista, em que o poeta, recalcado pelo construtivismo, ressurge como um objeto-a-mais do filme-poema que o contém. Entretanto, esse objeto-a-mais não é algo meramente quantitativo ou passivo, mas se traduz numa mudança de qualidade e atividade, pois as figuras humanas como que não cabem ali, com o suor que lhes cobre os corpos sob o sol. São os corpos dos poetas-a-mais que parecem exceder os limites estreitos do tabuleiro do pátio, como se a terra e o mar os chamassem. Nos amplos espaços épicos dos filmes que Glauber faria a seguir, para além do Pátio da capital provinciana e da classe social, atende-se a esse chamado da terra e do mar, em Deus e o Diabo na Terra do Sol, Terra em Transe e A Idade da Terra, os quais, com a terra nos títulos, são filmes que a situam sempre às margens do mar que leva ao longe.
Com o Cinema Novo, Glauber tomaria outros rumos poéticos, embora, já na época de Pátio, junto ao gosto pela poesia, concreta ou não, houvesse seu interesse pela literatura dita “regionalista” de José Lins Rego, Jorge Amado e Guimarães Rosa, mesmo porque esta não era confinada a uma região, ainda que se considerem as origens sertanejas do jovem artista, o qual em breve se projetaria no mundo, através de sua obra inclassificável. Aliás, o regionalismo se constitui em função de centros (não-regionais?) que circunscrevem o que seria regional ou não. Por que não se fala que a literatura ou a música popular do Rio ou a de São Paulo são regionalistas, se também elas vêm de determinadas regiões do Brasil? O grau de “universalidade” do que está na periferia depende também de sua situação em termos dos centros decisórios.
Criatividade e invenção
Quanto ao assunto em pauta neste artigo, Glauber chegou a resvalar na injustiça, como numa carta onde sarcasticamente escreve que “o concretismo deu grande contribuição à publicidade” (ROCHA, 1997, p. 433), embora saiba que este contribuiu para a renovação da poesia brasileira, e não só desta, mas também de outros campos artísticos, como a música popular mais experimental, as artes plásticas e o cinema, o que é comprovável por sua própria obra. Entretanto, o cineasta e crítico reconhecia a importância da poesia concreta, como num texto de 1964: “Se as gerações de 22, 30 e 45 se expressaram através da literatura – cujo último alento polêmico foi o concretismo nos finais da década de 50 – (…) a expressão por excelência do momento nacional é o cinema”. (ROCHA, 1981, p. 59). E noutro texto, de 1976, trata da superação do literário pelo audiovisual: “(…) a palavra já era. Talvez por isso os concretistas enterraram o verso”. (ROCHA, 1981, p. 320).
Num dos últimos textos de Revolução do Cinema Novo, seu livro de crítica, memórias, entrevistas e relatos quase-ficcionais e poemáticos, à maneira de esquema ou de poema (concreto), em “Pape Lygia 80”, o cineasta escreve, nomeando seu livro: “Romantismo./Reação parnasiana./Revolução Modernista./Neo-romantismo./Reação Concretista./Revolução do cinema novo.” Nesse pequeno texto-esquema e quase-poema, a “Reação Concretista” se dá em relação ao “Neo-romantismo”, ou seja, a um retorno da subjetividade, e a ela se segue dialeticamente a “Revolução do cinema novo”, como que numa síntese equivalente à anterior “Revolução Modernista”.
É preciso notar que o esquema de Glauber confirma toda sua estratégia crítica a qual, mais do que teleológica, voltada a um objetivo externo, é autotélica, visa reforçar a si mesma, sendo esta também a estratégia dos poetas concretos: para o cineasta e agitador cultural, o melhor da arte deve convergir para o Cinema Novo, ou seja, para seu cinema e sua postura crítica; e o mesmo ocorreria com os poetas concretos, pois segundo estes o melhor da produção poética de outros tempos e espaços também leva à poesia concreta e ao que a sucedeu, ou seja, à própria obra de seus poetas-críticos. Tudo serviria para confirmar e afirmar suas respectivas posições e seus lugares de importância e excelência. O que não significa, é claro, que tanto a obra de um Glauber Rocha quanto a de um Augusto de Campos sejam pontos finais. Pelo contrário, elas se constituiriam bem mais como pontos seminais, exemplos de criatividade e invenção.
Bibliografia
BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
BONVICINO, Régis. Livro inédito traz a poesia de Glauber Rocha. Folha de SP, Ilustrada, p. 12, 25 de agosto de 1989.
CAMPOS, Augusto de. Poesia 1949-1979. São Paulo: Ateliê editorial, 2001.
ROCHA, Glauber. Cartas ao mundo. Org. de Ivana Bentes. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
______. Poemas eskolhidos de Glauber Rocha. Org. de Pedro Maciel. Rio de Janeiro: Alhambra, 1989.
______. Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Alhambra/Embrafilme, 1981.
O texto é parte integrante da Revista Tantas-Folhas, edição v.1, n.1 (2020)
Jair Tadeu Fonseca
Professor e pesquisador de Teoria Literária da UFSC, doutor em Literatura Comparada pela UFMG, com diversos trabalhos publicados sobre as relações entre literatura e outras artes, principalmente cinema e canção popular. É cancionista, tendo participado dos grupos O Último Número, Sexo Explícito e Divergência Socialista.