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Roberto Soares

Roberto Soares – Vida de poeta


roberto soares
Autorretrato.

Roberto Soares morreu em 2020, pouco antes de completar 67 anos. Dos poetas reunidos em torno da revista Cemflores, a partir de 1978, em Belo Horizonte, certamente ele foi quem mais perseverou no que se costuma chamar de “vida de artista”, a qual era para ele a vida, simplesmente. 

Sua relação com a poesia e a performance artística era existencial e de tempo integral, mesmo à custa das dificuldades materiais devidas ao fato de ser soropositivo e à pobreza, que não o impediu de manter sempre uma postura de elegante nobreza. A ele cabia bem o título de “poeta marginal”, para além do que se entende por isso em termos de produção poética artesanal e de improviso, à margem dos padrões editoriais estabelecidos e do reconhecimento institucional acadêmico ou de outro tipo. Também por sua condição social e existencial, Roberto vivia pelas margens, onde conviveu com os marginalizados: moradores de rua, dependentes de drogas pesadas, “loucos” e menores desvalidos, através de programas de saúde pública como o Consultório de Rua, e órgãos como o centro de Referência da Juventude da prefeitura de BH, participando na prática da luta antimanicomial. 

ROBERTO SOARES

VOCÊ DIZ QUE SOU MALUCO

MAS SE A LUA FOSSE UM QUEIJO

EU SERIA LUNÁTICO.

(Flores, de Roberto Soares e Davi, 2001)

 

No sentido amplo de cultura, Roberto era um militante cultural, e contracultural, cuja postura não era de acomodação passiva numa situação confortável à margem e longe de tudo, mas, pelo contrário, era de ação social intensa.

 

o momento pede 

que os desesperados 

esperem o fim

o momento pede

que os esperados não esperem mais.

(Flores, de Roberto Soares e Davi, 2001)

 

No “livrinho”, citado acima, há uma sucinta autobiografia de apresentação de Roberto: 

Já publicou aproximadamente 15 livros de poesia, tendo participado dos grupos CEMFLORES, VÍRUS MUNDANUS e INCRÍVEL RÚCULA, também da editora POR ORA. Lançou dois cds e atuou em várias performances e interferências cênico poético [sic]. Atualmente coordena o projeto DRAPS, na região oeste de BH e participa do coletivo da rádio PIRATA FM. (FLORES AMARELAS PRA MIM).

Chamo a atenção para “aproximadamente 15 livros de poesia”, isso até há vinte anos, porque ele mesmo não guardou seus muitos trabalhos publicados em pequenas tiragens, que foram distribuídas imediatamente, e eram como as performances, de que foi um dos pioneiros em BH, após chegar de suas experiências com o teatro do Rio nos anos 70: algo que tem instantaneidade, que se faz como ação entre planejamento e improvisação, e que vale por si, enquanto se realiza. 

Roberto Soares
Foto: Júnia Vanessa – via perfil Facebook Robert Frank. Post: 7/11/20 (data da morte de Roberto Soares).

O que me conduz agora

é a fome,

conduz às mãos

ao corpo

na hora

conduz.

(Fogos de ar, 1980)

 

É a poesia da urgência e emergência do corpo em escrita performática, que até por isso recusa mesmo a revisão de textos. Poesia da surpresa e da transfiguração intempestiva do instante existencial: 

 

quero um dia um postal

quero um dia viver

quero algumas horas neste dia

a guerra a era gritos nova 

(…)

(Fogos de ar, 1980)

 

Numa referência a um célebre poema de Oswald de Andrade, temos, no curto texto intitulado “paralelo”, uma outra observação de que a utopia, ou a tópica do “dia que virá”, é questionada:

 

aprendi com uma menina de 10 

anos, que a fantasia e a utopia 

são sonhos que nunca tive

(Fogos de ar, 1980)

ROBERTO SOARES

Um paradoxal pragmatismo pode ser revelado aí pelo caráter performático da poesia de Roberto Soares, não necessariamente porque ela é escrita para um evento em que seria falada e “encenada”, mas porque ela se constitui como performance, num aqui-e-agora do pequeno espetáculo da vida.

 

não pretendo tirar nenhum poema da cartola, 

portanto 

– beije-me rápido.

(Fogos de ar, 1980)

 

De novo, a urgência poética sugere uma recusa ao adiamento utópico e ao seu não lugar. E neste outro poema, outra citação literária vai no mesmo sentido:

 

Alice,

se existe

um país das maravilhas não

sei com quem fica a chave

das sete portas: na sua 

viagem cuidado

para não entrar pelo (…)

(Fogos de ar, 1980)

 

E neste outro, a emergência exige o paraíso agora, o que também paradoxalmente não elimina o profetismo, considerando-se inclusive a ação em meio às margens e aos marginalizados, a que já nos referimos:

 

Que o carnaval caia neste dezembro, e cada ceia tenha seu prato, e cada seio seu vinho. Todos famintos. Mendigos ceiam num carro alegórico. Todos  debaixo do viaduto terão suas mesas, e sobre um trio elétrico as escolas tocarão sinos à meia noite, à meia noite.

(Fogos de ar, 1980)

 

Esse profetismo anti-utópico, ou seria “pós-utópico”, como propôs Haroldo de Campos depois, também surge com sentido político homoerótico, nos tempos da ditadura militar, e ainda é atual, como deve ser nas profecias, com o poema “Sentido Oposto”:

 

A sentinela,

sentido oposto 

do meu e do dela

no derradeiro momento

debaixo de uma chuva torrencial

que parecia o dilúvio

nada sentia, mas apostava 

que quem carregará a cruz 

não será o cristão

mas sim o general

no momento fatal

em que será beijado

pelo soldado raso

(Revista AQUI Ó, n. 3, 1979)

ROBERTO SOARES

Marca notável da poesia-profecia que Roberto Soares nos legou, essa recusa da utopia como ideal paralisante de algo que não existe, não elimina a des-utopia da realidade prosaica transformável pelo poético, que é uma promessa ativa de retorno ao paraíso.

 

Vamos fazer 

compras

no super mercado

 

Cumprimentar 

os vizinhos e

deixar o tatu 

cavar a terra

 

Depois 

construiremos nossa 

torre de babel

beberemos cachaça

nos doparemos amantes

 

até que nos aceitem

de volta ao paraíso.

 

(Flerte andróide in pam-pan-pão-pã-pam, Roberto Soares & Marcelo Dolabela, 1981) 

 

Notas

Para acessar os livrinhos na íntegra, clique nas capas.

Imagens e PDF  fornecidos pelo autor do texto.

 


Roberto Soares, o poeta e performer “draps” de BH.

Cartões postados no Facebook e Instagram de Tantas-Folhas, em janeiro de 2021:


 

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Jair Tadeu Fonseca

Professor e pesquisador de Teoria Literária da UFSC, doutor em Literatura Comparada pela UFMG, com diversos trabalhos publicados sobre as relações entre literatura e outras artes, principalmente cinema e canção popular. É cancionista, tendo participado dos grupos O Último Número, Sexo Explícito e Divergência Socialista.

5 thoughts on “Roberto Soares – Vida de poeta

  1. passamos muita fome juntos, uma vez uma dieta de soja e chuchú nos manteve em pé por um tempo que pareceu mais longo que outros tempos …

  2. Obrigado, Jair.
    Um ótimo registro do Roberto. E gostei muito de alguns excertos. Depois vou ver se tenho algum livrinho dele.

Comentários