TANTAS-FOLHAS
Nutopia

Imagine todas as pessoas vivendo a vida em paz *


Frida Kahlo
Moisés  (ou O Núcleo da Criação), Frida Kahlo, 1945.

P.S.

O que sobra de imaginação após a catástrofe? 

Que sonhos ainda podem ser sonhados quando se está cercado por imagens incessantes de fenômenos sobrepostos, encurralados que estamos pela avalanche de gestos, sons, cheiros, ruídos, acusações e oposições, dedos em riste a ameaçar nossa pequena margem de autoralidade em um tempo sem autores? 

Paradoxo dos nossos tempos, é no hiato entre o sismo e o soterramento (entre o barulho e a estática) que se revelam quais significados ainda valem a pena ser vividos, reinventados, rompidos, transpostos. 

É no fragmento de tempo desse hiato que este texto se constrói, desenvolvido livremente como ideias-manifesto do que ainda pode valer a pena ser salvo em um mundo que caminha para a anomia e a distopia. 

Declaração 1 – A avalanche é o descuido do tempo da palavra

A poesia e a literatura salvam. Não qualquer poesia, mas aquela que provoca o silêncio, ou o conter da respiração antes do ar voltar a sair. A palavra-metáfora que vai lá e soca a infinidade de certezas, de pequenas mesquinhezas e clichês do cotidiano. Você pode aprender com ela, concordar com ela, discordar dela, rejeitá-la, defendê-la. Mas ela está ali, presente, a esticar o tempo um pouco mais, a nos fazer sentir que “onde temos razão, flores não podem crescer”, como nos lembra o poeta israelense Yehuda Amichai. A poesia cura. Deveria ser obrigatório toda criança declamar poesia, ler em voz alta textos de literatura dos mais diferentes gêneros, mesmo os incompreensíveis, os de difícil acesso, não importa. Eles estão ali, presentes. Desnudando a vida, tornando a palavra carne e matéria. Sugerindo nuances onde há certezas, sons e silêncios onde há ruído e peso. A avalanche é o descuido do tempo da palavra. Há que se recuperá-la. 

Declaração 2 – Estanque o ruído, estenda o tapete e convide para entrar em Nutopia

Jonh Lennon
Capa do disco Mind Games, John Lennon, 1973.

Se toda a ordem presente na realidade é fruto da imaginação que venceu, imaginar deveria ser uma dimensão da vida levada a sério. Imaginar o que pode ser e o que não é. O que e como poderia ser. O princípio gerador de toda a criação e destruição é a imaginação. Ideias melhores deveriam superar ideias ruins. O mundo está cheio de ideias ruins e pessoas capazes de defendê-las. Estranho viver assim, sem que ao menos uma disputa leal e franca se dê nas arenas das insanidades. Cápsulas de imaginação deveriam ser incentivadas em todas as ações de arte, ciências, nas escolas, nos templos, onde há qualquer dimensão que trate da subjetividade humana.

Essa seria a avalanche das utopias, capaz de criar uma onda de novas ideias que de forma livre e desmedida invente um novo ciclo de desenvolvimento, não mais só tecnológico, mas de pensamento e criação livres, onde natureza, harmonia, verdade e justiça estejam no centro das pesquisas e dos avanços de uma nova forma de fazer ciência. Aquela que salva os homens deles mesmos. Pense bem! Todos os modelos de governança político, econômico, social, cultural e tecnológico parecem ter fracassado. Milhões protestam nas ruas, milhões caminham todos os dias atravessando fronteiras de territórios hostis para salvar seus destinos e seus filhos da fome e da guerra.

As formas de representação eleitoral, as embaixadas e a ONU, a OTAN e os órgãos de regulação estão aí para manter certos mitos intactos. Mitos que sugerem que viveremos condenados à miséria e a fome de muitos e a opulência de poucos, às guerras de todos os tipos, ao esgotamento dos recursos da natureza, aos muros, a seca real e simbólica. Inventamos esse modo de vida. Inventamos esse Sistema, inventamos os mitos que os sustentam. Podemos nos dar como tarefa urgente imaginar outras formas de ser e estar, de produzir e compartilhar, de pensar fronteiras e de conviver entre nós e com a natureza, a única realidade palpável com a qual contamos.

Como convite a essa empreitada poética que assegura que nos manteremos vivos diante do esgotamento, lembro da declaração de Yoko Ono e John Lennon em 1973 no álbum Mind Games, a respeito da Nutopia. Um país conceitual que nos convidava para “render-se à paz, e não lutar pela paz” [2]. Criaram uma Embaixada e convocaram seus amigos, fãs e todos que quisessem para serem embaixadores desse país utópico. Uma declaração singela, mas onde reside uma possibilidade: a mudança chega quando colocamos o tapete na frente da porta, escrevemos Nutopia e convidamos os outros a sentar na nossa mesa e a comer a nossa comida.

A placa no portão de Yoko-Lennon nos lembra que viver de acordo com suas próprias crenças exige mais do que os ruídos das redes sociais onde se compartilham ad nauseam fatos escolhidos por outros para virarem notícias em atos destituídos de valor, além de alimentar a dissociação e a repetição. Exige inventar o ethos, criar as notícias, afastar o medo e assumir o NOVO como um compromisso verdadeiro, transitório, efêmero, mas necessário.

A posição de eternos comentaristas de pautas priorizadas por um sistema doente que se retroalimenta da fofoca e da reatividade, leva à anomia. Imaginar é romper criativamente com essa agenda, é abrir espaço para o humor e o silêncio, para a contemplação e o envolvimento verdadeiro com o nosso tempo, a nossa história e os nossos desafios. Não há espaço para a futilidade, mas sim para a leveza, tal como Calvino [3] nos ensina se valendo do mito de Perseu: “Para decepar a cabeça da Medusa sem se deixar petrificar, Perseu se sustenta sobre o que há de mais leve, as nuvens e o vento; e dirige o olhar para aquilo que só pode se revelar por uma visão indireta, por uma imagem capturada no espelho. Sou tentado a encontrar nesse mito uma alegoria da relação do poeta com o mundo, uma lição do processo de continuar escrevendo”.

Essa ‘condição de poeta”, de alçar voo em direção ao desconhecido, de abrir o nosso terceiro olho, como propõe Amóz Oz, é uma declaração de retorno a uma espiritualidade não religiosa, livre de dogmatismos estéreis, das crenças em “tendências” e ideologias que ensurdecem e poluem a vida imaginária, a vida próxima da consciência mágica [4] que nós encontramos em todas as épocas como rastros simbólicos do espírito de cada época. A nossa do aqui e agora, é de reinvenção, de criar novos mitos, de estancar por alguns momentos o balbucio histérico dos bytes e terabytes, estender o tapete e fazer o convite: venha, ingresse na Nutopia! 

Declaração 3 – A alegria ainda é a prova dos nove

Harmony, Remedios Varo, 1956.

Oswald, Oswald, Oswald. Ah, Oswald…O que sobra quando o sismo prenuncia a avalanche e a avalanche prenuncia a queda? No hiato, tem o abraço. Pele com pele, cheiro, suor, saliva, antropofagicamente misturados no ato da despedida. Toda a solidão real ou simbólica deve ser rejeitada, a morte já é a solidão eterna. A vida é paixão, abraço, som e fúria. Entre a vida e a morte, é a pele que resiste. Não há avatar na hora da morte, nem twitter ou instantâneo de imagem. Nem no nascimento. Há o amor, ou a falta dele. O beijo, o abraço, a mão que acaricia a nossa pele. Este é o sentido de hiato que resiste no tempo e ao tempo. É preciso fazer desse sentido entre as coisas, um sentido das coisas. Só assim as avalanches, fruto da loucura de homens e mulheres que nos afastam do estado natural das coisas, podem ser debeladas por e pelos “Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados, pelos touristes. No país da cobra-grande”. [5]

 

* “Imagine all the people living life in peace”, verso da canção Imagine, de John Lennon.


[1] P.S. – Texto escrito para o projeto Avalanche, curadoria de Batman Zavareze para o Rio Festiv.al.

[2] ONO, Yoko, in OBRIST, Hans Ulrich, Entrevistas, 2009. 

[3] CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 

[4] Essa vinculação vai propiciar a comparação que Sartre faz da vida imaginária com uma vida próxima da consciência mágica, que nós encontramos em todas as épocas. O ato da imaginação é comparável ao ato mágico. Todo ato mágico é um ato destinado a fazer aparecer um objeto do desejo. O que o ato mágico propõe, deseja, na realidade é produzir o encantamento, expressando através desse encantamento, a expressão de um desejo (Arruda, 2008). 

[5] Oswald de Andrade, Manifesto Antropofágico. 

 

 

 

 

Marta Porto

Crítica da cultura, ativista, pensadora. Tem participado das principais arenas internacionais de debates sobre artes, cultura e políticas culturais nos últimos 25 anos. Vem liderando ou colaborando com programas das Nações Unidas, de governos e fundações sociais em projetos de democratização das artes e da cultura, comunicação cultural e engajamento social. É autora de mais de 40 artigos publicados em revistas e coletâneas de vários países, e autora dos livros: Imaginação, Reinventando a cultura (Pólen Editora, 2019; Comunicação no centro da mudança (Approach,2017); Nós do Morro, 20 anos (XBrasil,2008), dentre outros.

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