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Graffiti

GRAFFITI. A aventura fez história(s) 


A coluna LadoBeagá – coisas boas que existiram na cidade – traz o depoimento do editor Pablo Pires Fernandes sobre a Graffiti, revista de quadrinhos que foi criada e publicada de 1995 a 2012, com a participação de muitos autores de qualidade e o apoio de especialistas e artistas de renome na cultura brasileira: Moacy Cirne, Tom Zé, Jards Macalé, Itamar Assunção, Arrigo Barnabé, Hermeto Paschoal. Aprecie.

Graffiti
1996. Pablo Pires Fernandes, Clarisse Alvarenga, Marilá Dardot, Daniel Monteiro, Andrei Moura, Niris Quirino, Marcos Malafaia, Piero Bagnariol.

A Graffiti 76% Quadrinhos parou de publicar quando deixou de ser aventura e desafio. Foram 17 anos tocando uma revista de quadrinhos experimental, quase sempre aos trancos e barrancos, sem grana e movida por um idealismo de juventude. E desejo de se expressar e dar visibilidade a talentos desconhecidos, estabelecer conexões. Foi uma aventura e tanta, mas, como quase todas, a gente cansou e foi tocar a vida.

Acredito, porém, que o recado foi dado e, sem dúvida, a revista cumpriu seu papel. Inovou não só os quadrinhos no país, mas trouxe fôlego às artes gráficas e estabeleceu diálogo com outras expressões artísticas. Esta proposta, carregada de inquietude, sempre foi a motivação de todos que trabalharam para a concretização da publicação – o coletivo de editores, um time variado e excelente de artistas das HQs, a disposição de artistas importantes de dialogar conosco. 

Foi uma história valente: publicamos cerca de 300 histórias em quadrinhos, de mais de 100 autores em 1.868 páginas, conquistamos uns seis ou sete prêmios HQ Mix e ainda editamos cinco álbuns da coleção 100% Quadrinhos. Isso, além de suscitar muitas páginas de jornais, revistas e até estudos acadêmicos. 

A jornada foi movida por desejo coletivo e proporcionou a publicação de autores inéditos, resgate de histórias e de autores históricos – Nilson, Marcos Coelho Benjamin, Gilberto de Abreu, Lor, entre outros. 

As páginas da Graffiti estamparam entrevistas com nomes importantes da MPB, antes do atual resgate que têm, justamente, merecido. Tom Zé (1996), Jards Macalé (1996), que fez um show de lançamento bastante surrealista no Club Elite, Itamar Assumpção (1997), Arrigo Barnabé (1998), Hermeto Pascoal (1999), uma conversa entre Wilson Moreira, Nelson Sargento e Walter Alfaiate (1999), além do cineasta Peter Greenaway, do mestre argentino dos quadrinhos José Munhóz, de presidiários, crianças e anônimos, ao qual demos nome – Seu Thiago Ramos (2001). 

Enfim, a turma se jogou de corpo e alma na ideia de fazer uma boa revista. Sem medo de arriscar. E, hoje, creio que a ousadia foi não apenas boa, mas aspecto essencial que faz com que a revista seja lembrada (para poucos e especialistas, sim, mas, sabe-se). 

Ao longo dos anos, com considerável irregularidade de tempo e tiragem, conseguimos colocar na roda mais de 36 mil exemplares, o que é irrisório quando se considera que a Chiclete com Banana, por exemplo, chegou a uma tiragem de 100 mil em um único exemplar. Para pagar a impressão, promovíamos festas – foram memoráveis! A distribuição era primária, na base da mochila, suor e consignação em pouquíssimos locais em Belo Horizonte, Rio e São Paulo. 

Bons tempos aqueles…

Produzir a Graffiti 76% Quadrinhos ao longo desses anos todos foi uma boa aventura. Casos hilários, outros quase trágicos e bastante diversão e criatividade coletiva. Mas, em meio a certa anarquia criativa, havia seriedade e o projeto seguiu se concretizando. 

O conselho editorial e o leque de colaboradores se transformaram com o tempo. A saída e a chegada de integrantes, no entanto, nunca abalaram um princípio original de um grupo motivado pelo desejo de realizar o projeto de inovação e experimentação. 

O caráter coletivo, na verdade, um grupo de amigos com afinidades estéticas e políticas – e acreditando que tudo é a mesma coisa – permitiu um grau de liberdade bastante particular. Essa característica se refletiu nas páginas impressas, tanto graficamente nos quadrinhos, como na inserção de material jornalístico, que estabelecia pontes entre linguagens, o que sempre foi um princípio sólido nas nossas cabeças jovens. 

Uma prática que certamente deixou lembranças em uma geração foram as festas da Graffiti. Na verdade, foram as primeiras ações públicas da revista, já que as festas serviram como fonte de arrecadação para pagar os custos de impressão do número zero. Isso era 1995, no começo do ano. E o ano todo se passou, com mais duas festas, até fazermos a primeira festa de lançamento, em 14 de dezembro, no incrível Cine Imaginário, misto de bar, cinema e casa de shows. 

Graffiti

Quadrinhos de Fabiano Azevedo – número 23.

A publicação da revista foi confusa. Primeiro, viabilizamos com as festas. Depois, um número teve a produção de Niris Quirino, uma parceira incrível. E, posteriormente, só seguimos graças ao apoio da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte, com a compreensão e parceria especial do Afonso Andrade, o maior incentivador do Festival de Quadrinhos de Belo Horizonte. 

Um pós-fanzine experimental

Nessa ideia de experimentar, há que se dizer que a década de 1990 vivia um momento de proliferação de fanzines de todo tipo: quadrinhos, literários (muita poesia), políticos. Era uma nova forma de expressão que revisitava, de certa forma, a geração mimeógrafo, mas à base de xerox, o que democratizava meios simples e diretos, ao mesmo tempo que realizava possibilidades gráficas mais amplas. 

Isto tudo parece pré-histórico atualmente, em tempos de programas sofisticados de edição e tratamento de imagem, mas tudo era feito ainda no modo analógico. À época, eram os recursos disponíveis. Estilete, lápis, spray, canetas e borrões eram coisas normais. E as máquinas de xerox eram uma ferramenta bem útil e acessível. No caso da Graffiti, a linguagem dos fanzines foi um componente importante, mas havia uma pretensão de incorporá-la e ampliá-la de maneira mais “elaborada”. 

Graffiti
Quadrinhos de Marcelo Lelis – número 1.

Um dos fundadores da revista, Marcos Malafaia, tinha bastante conhecimento de técnicas de impressão, já que a família era proprietária de uma tipografia. Nela, além de imprimirmos o número zero da revista, aprendemos a lidar com o processo e isso nos permitiu criar e experimentar utilizando recursos muito distintos. E fizemos. 

Um dos “experimentos” se tornou notório. Logo após a capa, havia recorrentemente um papel de “seda”, ao qual, ao final de um certo volume da revista, deixamos um recorte para usos alheios, impresso no formato de um “papel para cigarros”. Mas foram usados, na revista, muitos papéis – manteiga, craft, de cores e gramaturas distintas –, o que possibilitou uma experiência tátil específica e, ao mesmo tempo, manteve o caráter artesanal oriundo do fanzine e o elevou a outro plano. 

Um dos aspectos que explicitaram a constante mutação da revista era a própria logomarca, que se transformava a cada edição. Após alguns anos, passamos a editar volumes temáticos (infância, prisão, futebol etc), orientando os colaboradores a produzir conforme o tema. Isto se traduziu em edições temáticas consistentes do ponto de vista conceitual, sem deixar de lado a variedade estética e a pluralidade de visões e traços. 

Cruzamento temporal

No número 9 da revista, fizemos uma espécie de coletânea de melhores momentos dos seis anos da Graffiti. O mestre Moacy Cirne , poeta e grande pesquisador da linguagem dos quadrinhos no Brasil, sintetizou esta ideia em um texto que publicamos, em outubro de 2001. “Uma revista que, partindo do que melhor tínhamos na contracultura dos anos 60/70 – por exemplo, uma certa libertinagem crítica e criadora -, procurava se moldar com ousadia para tentar uma nova formulação gráfica e temática. ”

Agora, tantos anos depois, releio o texto do mestre Cirne e não acho palavras mais precisas do que as dele quando escreve que a Graffiti “tornou-se um empreendimento editorial que, ao beber na fonte da contracultura (reciclando-a e pós modernizando-a, a bem da verdade), apostou na mais pura criatividade, sem medo de errar, sem medo de ousar, sem medo de radicalizar”.

Alguns quadrinhos da Graffiti

 


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Pablo Pires Fernandes

Jornalista. Foi integrante do conselho editorial da Graffiti (1995 a 2012). Trabalhou no jornal O Tempo como repórter e redator do caderno Magazine e editor de Internacional (1997-2005). Trabalhou no jornal Estado de Minas como redator e editor de Internacional (2005-2015) e editor do caderno Pensar (2015-2019). Atualmente, é diretor de redação do site Dom Total, onde também publica crônicas. Gosta de cachorros, viajar e cozinhar.

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