TANTAS-FOLHAS
Cinema

O cinema como resistência: os processos incendiários das imagens


Cinema
Inventar. Sugestão de abertura 3.

É comum pensarmos a relação entre cinema e educação como uma espécie de zona de combate. Há um pensamento do senso comum que entende – ou se apropria – de uma ideia em que o cinema teria um papel pedagógico específico, e bastante reduzido, de auxiliar na compreensão de um determinado conteúdo. É comum ainda vermos filmes sendo usados como recurso de apoio para abordar um determinado tema, assunto de uma disciplina específica, ou trazer alguma diversidade pedagógica na rotina das aulas. Atualmente, o que se tem é uma outra linha que já aposta na potência pedagógica do cinema por sua instância criativa, de sua singularidade nos modos de pensar e efetivar uma outra forma de educação a partir de elementos do real. Essa relação potente não é tão simples, mas vou tentar defender um ponto, pelo qual o cinema pode adentrar outros espaços pedagógicos, não apenas como formação de um olhar, mas como “máquina incendiária de percepção” em outros espaços, para diferentes públicos.

Sempre gostei de ver o espaço da sala de aula como um campo de combate. Não no sentido de enfrentamento, mas de defesa de ideias e possibilidade de transformação que é negociada a todo instante entre professores, alunos, corpo administrativo, sociedade, comunidade. E nesse sentido, a defesa de um novo uso da máquina do cinema é fundamental para friccionar essas outras máquinas (mídia, escola, discursos, etc.). O cinema dentro da escola pode ser visto, como nos diz Migliorin, enquanto um cinema expandido, que se expande naquilo que o cinema inventou de mais potente em sua história: as formas de ver e inventar o mundo. Há modos do cinema mobilizar o real que afeta o próprio real. 

Neste texto, estou pensando o cinema como uma possibilidade de abertura da escola e do estudante à linguagem audiovisual por meio de uma experiência sensível, que tem a potência de afetar os modos de ser próprios e de sua comunidade. Apostar nessa linguagem como encontros, de um acontecimento que pode incidir sobre o dado de realidade, produzindo outras percepções. Então, a pergunta que fica é: poderiam essas imagens afetar a comunidade sem permanecer apenas como restos, nas franjas de um processo educativo? Poderiam essas imagens rasgar a ordem e dar a ver uma inteligência e uma sensibilidade que nos abala, para além do status de mero espectador?

Cinema
Apresentação 5.

Antes de tudo, tal contexto implica encarar o desafio do ensino-aprendizagem como um processo de invenção.  E, considerando tal contexto, pensar o processo de aprendizado em cinema como um processo de emancipação. Mas é importante estar atento para o fato de que a emancipação não é somente um discurso, ou algo que está apenas circunscrito a um estado acabado de ideia de sujeito, mas sim uma prática. Já nos disse Jacques Rancière (2004) [1] que não se emancipa o sujeito de maneira vertical, mas se estabelecem práticas que partem da igualdade das inteligências e das potências sensíveis postas em relação. É através da possibilidade de uma inteligência qualquer participar da transformação do mundo sensível que a emancipação se efetiva, e um estudante emancipado traz um mundo consigo – pleno de códigos – que abrem formas de forjar novos começos para si, suas pesquisas e criações. É nessa multiplicação de entradas que o estudante tem a possibilidade de escorregar entre os códigos. Por isso é importante romper com outra ideia da inserção do cinema na educação como aquele que forma um olhar meramente voltado para o ser que critica, que avalia, julga, relaciona, se apropria de forma conteudista das imagens a favor de um propósito pedagógico específico.O cinema nos confronta com uma ação estética de forte dimensão política, na qual a partir da realidade se inventa e transforma – o real. Poderíamos pensar que essa invenção é o próprio real. Nesta ótica, o cinema na escola se insere como potência de invenção, experiência intensificada de fruição estética e política, em que a percepção da possibilidade de invenção de mundos é o fim em si. 

Mas afinal, qual seria esse papel pedagógico do cinema na escola?  Bom, é preciso entender que ensinar com o cinema passa, justamente, por um não saber dos elementos que se preparam para um acontecimento, ou seja, para uma invenção radical consigo e com o outro, com as imagens, com mundos e conexões que o cinema nos permite. É preciso permitir que as imagens queimem, causem ruídos, provoquem perturbações que permitam a sua própria emancipação. 

O professor Cezar Migliorin (2019) [2]  destaca que o cinema na escola não pede nada, apenas se aconchega nas capacidades sensíveis dos sujeitos comuns. Para alguém ser um espectador de cinema, é necessário que a igualdade e a possibilidade de fruição sejam anteriores a qualquer hierarquia. O cinema não se encontra na escola para ensinar algo a quem não sabe, mas para inventar espaços de compartilhamento e invenção coletiva, colocando diversas idades e vivências diante das potências sensíveis de um filme.

Uma experiência de inventar

E como poderíamos pensar o cinema enquanto essa potência emancipadora e transformadora que “não pede nada” à escola? Bom, existem algumas experiências potentes que trazem a linguagem do cinema como força criativa, estética e política sem demandar nada, sem exigir nada.  Grupos de pesquisa e ação como o CINEDUC [3], que há mais de cinquenta anos promove a integração entre cinema, cineclubismo e oficinas com crianças e jovens. Ou o CINEAD [4] – cinema para aprender e desaprender – coordenado pela professora da UFRJ Adriana Fresquet que desenvolve atividades de pesquisa, ensino e extensão vinculando políticas e pedagogias do cinema e da educação em parceria com escolas públicas, a cinemateca do MAM e com o hospital universitário da UFRJ. Outra fonte importante de pesquisa é a Rede Latinoamericana de Educação, Cinema e Audiovisual, Rede Kino [5], fruto da interlocução institucional entre as professoras universitárias Inês Teixeira (Faculdade de Educação/UFMG), Rosália Duarte (PPGE/PUC-Rio), Milene Gusmão (Curso de Cinema da UESB) e Adriana Fresquet (PPGE/UFRJ), e também as professoras Bete Bullara e Marialva Monteiro (Cineduc-RJ) que idealizaram, em 2008, uma iniciativa que pudesse congregar pessoas e instituições para compartilhar experiências e somar esforços no intuito de viabilizar ações conjuntas relacionadas a essas áreas.

Uma dessas experiências que gostaria de compartilhar com vocês foi o projeto Inventar com a diferença: cinema e Direitos Humanos [6], uma ação de âmbito nacional. Ele atuou inicialmente junto de escolas públicas de vários municípios brasileiros sob a coordenação do grupo Kumã, do Instituto de Artes e Comunicação Social (IACS) da Universidade Federal Fluminense, em parceria com a Secretaria Nacional de Direitos Humanos. Foi em sua primeira edição, de 2013 a 2014, que pude participar como um dos mediadores de Belo Horizonte. A proposta do programa era fazer um convite provocativo ao aparelho educacional: promover um encontro entre cinema, direitos humanos, educação e escrita de si; pensar a dimensão dos direitos humanos como possibilidade de criação e afetação no real pelo contato dos jovens com a comunidade, suas histórias e percepções, atravessando os espaços educacionais escolares.

O projeto foi organizado da seguinte maneira. Primeiro, foi feita uma chamada pública para produtores, realizadores, educadores que quisessem participar de um projeto experimental de cinema e direitos humanos. Esses selecionados seriam os mediadores nos municípios. Os mediadores participaram de um curso de formação em Niterói, no Rio de Janeiro, onde pudemos experimentar e vivenciar a metodologia do Inventar. Além disso, participamos de rodas de conversa com professores de comunicação e cinema, onde exploramos as dimensões do audiovisual para além da questão do espectador. Éramos provocados a sempre pensar as possibilidades de um cinema para pensar o mundo, buscando uma interação com ele através de experiências individuais e coletivas. Dessa formação, cada mediador tinha o compromisso de conseguir cerca de dez instituições parceiras (espaços educacionais e culturais públicos) em suas localidades onde pudéssemos replicar o aprendizado e construir as oficinas de produção audiovisual através dos dispositivos. 

Imagens retiradas do curta Pelas Janelas (2014).

O desafio compartilhado por todos era trabalhar, por meio de dispositivos de ação, as dimensões do cinema para além da questão do espectador. Um cinema para pensar o mundo por meio de interações, experiências individuais e coletivas.  Tínhamos como principal bússola de trabalho, a investigar o território comunitário, o engajamento em múltiplos conhecimentos construídos de forma coletiva, dimensões de igualdade buscando fomentar uma potência criativa e abertura à diferença enquanto processo subjetivo. 

Esses elementos são fundamentais para pensarmos não só o cinema enquanto arte, mas, como já apontado, a própria dimensão política das escolhas das imagens que circundam nossa realidade. Hoje produzimos toneladas de dados em forma de imagens através do celular, somos hiper expostos aos mais diversos dispositivos eletrônicos de exibição e produção das mesmas. Mas como podemos, enquanto educadores, refletir sobre as escolhas estéticas e políticas que fazemos quando registramos alguma coisa? Seria possível interferir na lógica massificada de registro? Como podemos nos apropriar dessa máquina de cinema de forma a subverter sua lógica mais massiva? 

Material de apoio fornecido aos mediadores e professores participantes da 1ª edição.

E nesse sentido, o projeto Inventar estimulou pensar outras formas de cinema, possibilitando aos alunos e professores que experimentassem refletir sobre o mundo através dessas diferentes vivências. Essa relação foi construída de forma dialogada e experimental entre todos os participantes das escolas parceiras. Para estabelecer uma forma de diálogo, foi elaborado um material de apoio – que podia ser recriado e apropriado conforme o gosto da turma. Esse material propunha uma pedagogia de dispositivos onde, através de algumas fichas de atividades e exercícios experimentais, tornaria possível articular aspectos referentes às técnicas e à linguagem audiovisual, fragmentos de textos e reflexões sobre aspectos dos direitos humanos, com os temas que fossem caros aos interesses destes participantes. 

Esses projetos experimentais de linguagem cinematográfica dentro da escola se alimentam de uma “aposta” na invenção de cenários que arregimentam realidades pautadas pelas subjetividades. O objetivo era, por meio da realização destas múltiplas imagens e histórias, promover o deslocamento de olhares a respeito do mundo enquanto algo que tenciona nossas formas de estar, interagir e interferir no mundo, na comunidade e na vida. O projeto parte de uma “aposta no cinema”, uma “aposta no Inventar” para pensar o cinema enquanto instrumento político nas/das/pelas escolas.

Para o cineasta e crítico de cinema Alain Bergala (2008) [7] , é fundamental pensar o cinema como arte e potência dentro da escola. Bergala defende uma proposta pedagógica que promova o encontro do cinema com os estudantes como o desafio do contato com a alteridade do cineasta, do mundo conhecido e do mundo representado. A experiência sensível do mundo, uma pedagogia da criação.  A imagem pensa e faz pensar, há uma pedagogia intrínseca nesta relação, que estimula a realização seja por câmeras digitais mais precárias, celulares ou até mesmo enquadramentos recortados em folhas de papel. 

Fragmentos do filme Pelas Janelas (2014).

Muitas imagens, registros, histórias e construções poéticas foram produzidas no Brasil todo por esses encontros [8]. Dentre eles, vale destacar uma das mais poderosas, e problematizadoras, que foi trazida por mediadores que escolheram apresentar a proposta para jovens que se encontram à margem: jovens que cumprem medidas socioeducativas.

O difícil conceito de socioeducação [9]

Frames de dispositivos produzidos por jovens em cumprimento de medida socioeducativa.

As medidas socioeducativas surgem como conceito no Brasil a partir de redação do ECA, Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990/2000), mas passam a existir como um operador teórico e prático para designar o trabalho educativo com adolescentes em conflito com a lei mais fortemente desde 2006, com a implementação do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE). A socioeducação compreende um conjunto de medidas pedagógicas de caráter reformatório que inclui a privação de liberdade provisória por um período que pode ir de 45 dias a, no máximo, três anos – ou quando completos os 21 anos (neste caso, a liberdade é conferida mesmo antes de cumprida a totalidade da pena). 

Conforme argumenta Édio Raniere [10] em sua eloquente tese crítica ao sistema socioeducativo brasileiro (cf. RANIERE, 2014), as medidas socioeducativas atualizam a antiga perspectiva de reforma social através de três conceitos: responsabilidade, identidade e Direitos Humanos. A tradição da educação para jovens infratores no Brasil baseou-se ao longo de quase todo o século XX na administração do tempo, no estabelecimento de rotinas e no cumprimento de certos programas diários, visando sobretudo à reforma do caráter e reinserção social. Sumariamente, os jovens antes criminosos passariam por um programa disciplinar que os levariam à uma readequação à sociedade, conscientes de suas ações, discernindo entre boas e más condutas. A socioeducação, por outro lado, de caráter mais liberal, se reveste de estratégias que operam sob lógicas e princípios próprios ao novo espírito do mundo capitalista (PELBART; NEGRI; LAZZARATO; BOLTANSKI, DELEUZE). Partilhando de ideias caras ao mundo do empreendedorismo de hoje em dia, que vão da governabilidade e auto-gestão ao sistema de premiação de metas, como princípios fundadores, as medidas socioeducativas atuam sobretudo na modulação das formas de vida dos jovens numa sofisticada combinação entre uma máquina macromolar repressiva e um micropoder que modela subjetivamente. 

Cinema

Frame do filme: MundoCão produzido por jovens em cumprimento de medida socioeducativa de Vila Velha, ES.

Segundo essa perspectiva, a intensidade do que poderíamos entender como desejo de reforma, moralização, correção, etc., varia conforme os diferentes centros e estratégias adotadas. Contudo, o que lhes parece comum é o fato de subjetivarem o jovem criminoso por meio da produção de enunciados, regimes de visibilidade, formas de representação e técnicas biopolíticas que, compartilhando a tese de Raniere, se baseiam na noção de identidade e indivíduo, dotando-a de uma essência e interioridade, e esvaziando assim as próprias operações subjetivas. Poderíamos dizer que seu princípio é o de um certo cinismo.  

Fundada na identidade do jovem preso e invisibilizando os dispositivos sobrecodificadores das singularidades, a ação socioeducativa tem respaldo no plano individual, como uma espécie de hiper individualização dos velhos paradigmas correcionais, que antes visavam à coletividade. Contudo, se outrora as ferramentas empregadas tratavam os “meninos” todos como iguais, agora elas atuam micro politicamente, modelando diferentes fluxos subjetivos, agregando formas moralizantes menos baseadas na porrada, no cassetete, na solitária ou nas palavras de ordem, poderíamos dizer; para encontrar novos fluxos baseados em rotinas hiper concentradas no indivíduo, agregando experiências com outros campos do trabalho, como a informática e a programação, mas também as artes, como a música, a poesia, o hip hop e, ao que nos convém, o cinema. É a combinação entre a velha fábrica-exército-presídio-escola e o novo escritório do Facebook que parece ser a base das medidas socioeducativas.

Responsabilidade, violência e invenção

Cinema
Frame realizado por jovens em cumprimento de medida socioeducativas de Santa Luzia, Recife.

Na chave da responsabilização individual e de um Estado que catalisa seus esforços para preparar o terreno para o jogo do capital neoliberal, o discurso que recai sobre os jovens nas medidas socioeducativas e os chancelam parece ser um misto de crença nos aparatos de controle e regulação de valores, fortemente marcado pelos ideais conservadores, como noções de família, cidadania e direitos. Aqui, um Estado preocupado com a propriedade privada transfere sua responsabilidade pela prática da responsabilização do outro (BUTLER, 2015) [11], numa lógica neoliberalista onde cabe aos indivíduos lutarem por seus destinos, bem como serem responsáveis por aquilo que eventualmente os tenham levado a ocupar o lugar que atualmente ocupam. Nas medidas socioeducativas isso é sintomático, uma vez que parece sugerir que grupos sociais subalternos ou violados secularmente devem arcar, agora, com os agouros das vidas que levam, numa lógica definida pela sacralização da meritocracia. 

 

É neste sentido que gostaria de pensar essas experiências cinematográficas como abertura de um canal expressivo, onde os jovens integrantes do sistema possam, através de novas formas de intervenção, atuar sobre o real, experimentando maneiras inéditas de circular espaço-temporalmente pelas unidades… 

 

Para Jack Young (2003) [12], um contrato social baseado em noções de cidadania que partilhem não apenas dos direitos formais, mas também da incorporação desses indivíduos de maneira substantiva na sociedade, começa a ser negado a parcelas específicas da população. Nesse sentido, eles se veem privados de direitos legais, políticos e sociais, que acabam por minguar o mínimo de condição de emprego, renda, educação, saúde, habitação, mobilidade. A esse pensamento poderíamos acrescentar que as operações estatais não estão limitadas às dimensões contratuais e materiais das vidas dos jovens. Mas são também um corte transversal na experiência com o sensível e na possibilidade mesma dessas vidas se afirmarem como vidas e, em diálogo com Butler, serem passíveis de luto, por serem vidas mesmo, entendidas como tais – e não como as sobras.  

É neste sentido que gostaria de pensar essas experiências cinematográficas como abertura de um canal expressivo, onde os jovens integrantes do sistema possam, através de novas formas de intervenção, atuar sobre o real, experimentando maneiras inéditas de circular espaço-temporalmente pelas unidades, ressignificando sua passagem por tais espaços e conectando-a com a produção de narrativas e histórias que vão do biográfico ao exterior e não se limitam pelas trajetórias individuais que os levaram ou os encerram ali e mais cruelmente são determinantes de seus possíveis, notadamente marcadas pela presença da violência.

Violência que ora é associada ao comportamento social desviante, que não segue as normas e condutas sociais e se presentifica no cotidiano do tráfico, em roubos, homicídios, dentre delitos variados, acompanhada de alguma dose de arrependimento, como em muitos dos relatos ajustados ao que desejam os agentes socio-educadores, pedagogos, políticos e a própria sociedade. Mas, também, e talvez ainda mais importante, uma violência que opera subjetivamente, que define relações entre iguais, que media laços afetivos, que produz corpos e estéticas, que atravessa os modos de fala. Poderíamos, assim, pensar numa espécie de imanência da violência na vida desses jovens e que se confunde com a precarização material da existência e a um só tempo à invenção de outras linguagens face à interdição sensível produzida pelo Estado na vida dos pobres.

Frame de exercícios de fotografia realizado por jovens cumprindo medida socioeducativa de Cabo de Santo Agostinho, em Recife.

Assim, se pensamos a potência da experiência com a imagem e a realização de narrativas audiovisuais sob uma perspectiva afirmativa, reconhecendo a própria violência enquanto um modo de existência, e não algo a ser extirpado, não podemos deixar de notar que muitas vezes os diversos projetos e ações que atuam na companhia das imagens e do cinema tem sido definidores para uma intensificação dos mesmos mecanismos que sobrecodificam os jovens e os reconectam ao destino de violência enquanto criminalização, tráfico, banditismo, espetacularização, fetiche, etc. De outra maneira, poderíamos dizer que não basta que o cinema esteja nestes espaços para que sua ação seja efetivamente potencializadora das vidas, é preciso que as experiências possam por sua vez romper ou ao menos tencionar de maneira relacional os mecanismos que operam na produção subjetiva, inventando propriamente outras formas de distribuição dos corpos, tempos e espaços, bem como novas formas de fazer ver, fazer ouvir, fazer sentir. Uma nova performance com o cinema, se quisermos, que poderia alterar, ainda que momentaneamente, a própria experiência que se tem com a violência cotidiana dessas vidas.

Frame de exercício realizado por jovens em cumprimento de medidas socioeducativas de Jaboatão, Recife.

Finalmente, ao pensarmos sobre a importância das imagens produzidas por estes jovens, entendemos que elas possuem uma força provocativa ao incidir sobre o próprio espaço dos centros, notadamente precários, mas também por outros ambientes nos quais estas narrativas não coexistem – festivais de cinema, salas de aula, este artigo acadêmico. Tal percepção parte da hipótese lançada por Didi-Huberman (2012) [13] quando este nos interroga sobre que tipos de conhecimentos uma imagem pode despertar quando esta irrompe o real. Tais imagens possuiriam a força de provocar uma espécie de “ardor” ou incineração. As imagens poderiam inflamar conhecimentos e interpretações que antes não eram apreensíveis na realidade dada de uma tal experiência. Inspirados por este tom, gostaríamos de trazer três conceitos-chave que nos auxiliarão na leitura das imagens: enquadramento, heterotopia e desejo.

Enquadramento

Mundão é a forma como os jovens se referem ao lado de fora do presídio [14]. O lugar de onde vieram e para onde retornam ao cumprir a sentença, ou completar 21 anos. Legalmente, os jovens retomam a vida social como “cidadãos de plenos direitos, sem registros criminais”. Uma “vida nova”. Porém, como muitos apontam em seus depoimentos, o mundão não é apenas o lugar do reencontro com amores, lares estruturados, famílias, antigas vidas. O mundão é o lugar de tensão e risco. Do conflito, do dissenso. Da chapação na madrugada, dos baculejos, do trabalho penoso, mas também da diversão, dos amigos, das farras, do sexo, das drogas. O mundão é muita coisa. Da “tentação” em permanecer “correto” e se ter uma vida livre da dívida legal (um termo que nos parece vago e sem sentido), alguma busca por qualquer tipo de estabilidade em conformidade com o mundo moral e as contingências do real, do desejo e o devir-mundão. Contudo, se por um lado os centros socioeducativos ainda parecem buscar algum tipo de atitude reformadora, por outro não implicam no apagamento das experiências vividas e construídas, e nem garantem uma transformação dos modos de representação direcionados aos jovens egressos desse sistema. O conflito social que encaram diz respeito a que tipos de enquadramentos eles estão sujeitos na constituição do tecido social. 

 

As produções destes jovens não só organizam a experiência visual como também criam outras formas de relação a partir dos laços entre um eu e um nós indiferentes.

 

Com Judith Butler (2015) entendemos que os enquadramentos (to be framed) agem na diferenciação das vidas enquanto aquilo que podemos apreender e o que não pode ser entendido como tal. Ou, ainda, na diferenciação daquilo que deve viver e do que pode se deixar morrer (Butler reverberando Foucault) por não se tratar de uma vida mesmo, compreendida como uma vida, aquela vida. Poderíamos dizer que para os jovens que entram e saem cotidianamente dos socioeducativos há uma espécie de enquadramento transcendente, que os antecede ao mundo do crime, que os antecede enquanto corpos ou vida mesmo. Ou seja, esse enquadramento parte de um estigma excludente – todo quadro determina o visível e o que o separa – onde há ao menos duas formas distintas de sobrecodificação que os revestem da identidade marginalizada e, com uma frequência acachapante no Brasil, são ainda mais intensamente perceptíveis nos jovens corpos negros das periferias brasileiras. Essa sobrecodificação atua na permanente identificação dos jovens como criminosos através de diversas marcas distintivas que vão desde o modo como eles são representados pelas narrativas midiáticas (Cezar Migliorin) ou como o próprio cinema tratou de conceber uma espécie de estética espetacularizante da violência consumível e fetichizada. Seja como for, mesmo livres, os jovens permanecem enquadrados sob os paradigmas da invasão ou das ameaças.

Assim, ao pensarmos a relação entre tais enquadramentos e os discursos presentes nos filmes desses jovens, entramos em contato com outras figurações, aparições e singularidades. São imagens que escapam às lógicas do enquadramento identitário e aos enunciados determinantes que os filiam imediatamente a certos padrões e clichês criminais. As produções destes jovens não só organizam a experiência visual como também criam outras formas de relação a partir dos laços entre um eu e um nós indiferentes. Os sujeitos são constituídos mediante normas que, quando repetidas, produzem e deslocam os termos por meio dos quais os sujeitos são reconhecidos. Poderíamos dizer, ainda mais, que é a própria noção de reconhecimento que se vê perturbada pelas narrativas desses meninos. Pois, sabemos, os enquadramentos, mais do que apenas atuarem no regime da representação, são determinantes em relação àquilo que os jovens podem ou não dizer, podem ou não experienciar.

Dito de outra maneira: assumir certo enquadramento significa adotar certas capacidades de operar, de dizer, de se inscrever no real. É uma filiação entre o que uma identidade é enquanto representação e o que pode enquanto produção subjetiva. Por isso é que a recusa do enquadramento é menos um ato de enfrentamento do que uma completa desidentificação com certas expectativas e sobrecodificações introjetadas sobre os corpos e subjetividades dos menores.  

Ao olharmos a produção de imagens e discursos desses jovens, somos provocados a pensar a respeito da construção, e os limites, de uma pedagogia da imagem que encare tais desafios. Pensar sobre quais diálogos e falas são enunciadas quando rompemos com os “silenciamentos” impostos a estes jovens em conflito com a lei, e quando dedicamos um espaço para nos tornarmos espectadores de seus discursos e visualidades. 

Heterotopias

Cinema
Vila Velha Sequencia 26.

Poderíamos nos perguntar então como é possível “enxergar” tais produções como uma espécie de heterotopia. Heterotopias (FOUCAULT, 2016) [15] entendidas aqui como espaços dentro dos campos de rotina que formam “contra-espaços”, ou lugares fora de lugares tais como os cemitérios, bosques, prisões, mosteiros, etc. Heterotopias são esses lugares outros construídos pelas sociedades que possuem seus próprios regimes temporais e espaciais. Assim, se por um lado os centros socioeducativos são ordenados sob o prisma do controle disciplinar, nos perguntamos se, com o cinema, na companhia das imagens, tais espaços homogêneos poderiam dar lugar à invenção de outras práticas que abririam novas espirais entre as linhas e fileiras dos centros. 

Neste sentido, nos parece importante retomar O Mundão como um lugar complexo que é continuamente atualizado no cotidiano dos centros. De outra maneira, o Mundão, que é esse de fora, se presentifica e se vê atualizado nas práticas espaço-temporais dos jovens. O Mundão não “abandona” os meninos quando eles estão presos, questão que se deduziria por um princípio dicotômico entre jovem livre x jovem preso. Pois, como vimos, as relações entre os modos de atualização dos enquadramentos tornam mais porosos os laços entre uma identidade criminal e sua sobrevivência no exterior. Há aqui um paradoxo radical. Poderíamos esboçar aqui uma ideia sobre o Mundão como a própria invenção de outro mundo, como uma camada de relações afetivas, discursivas, estéticas, sobre a camada do socioeducativo, agregando novos significados e movimentos. Perder de vista o Mundão seria assumir o enquadramento estatal que entende que o Mundão só opera a partir de uma dimensão do negativo, da ausência, da falta.

Resistência

Neste sentido, ao destacar a produção audiovisual feita nos centros socioeducativos, busca-se a dimensão ética de suas imagens, trazendo o discurso desses jovens por meio da potência de suas narrativas. São exemplos onde, como aponta Augusto Boal (2009) [16], experiencia-se uma dimensão emancipatória da/pela imagem, onde elementos que são comumente vistos como ferramentas de reprodução de desigualdades e como canais de opressão, ganham novas cores quando usados pelos oprimidos. As imagens agem como forma de rebeldia e ação, não como forma passiva de contemplação absorta. 

 

A expressividade e o discurso são importantes vozes da identidade e da participação dos sujeitos na sociedade. Ao silenciarmos tais discursos, somos reduzidos a seres sem política, sem tolerância, sem poesia, sem o humano.

 

Interessa entender os discursos produzidos com/pelas imagens enquanto expressão de liberdade manifesta no espaço coletivo, como forma de se posicionar no mundo. A expressividade e o discurso são importantes vozes da identidade e da participação dos sujeitos na sociedade. Ao silenciarmos tais discursos, somos reduzidos a seres sem política, sem tolerância, sem poesia, sem o humano. Como já introduzido, a forma mais comum de representação, construída e reproduzida pela sociedade a respeito dos jovens em conflito com a lei, parte exatamente de uma exaltação aos apagamentos, onde suas histórias são geralmente submergidas por falas de autoridade do Estado, onde seus corpos são “decupados” em closes, suas marcas corporais atuam enquanto exemplos midiáticos de violência e agressividade, num processo de exaltação à desconstrução do corpo em pedaços sem identificação afetiva, fragmentos sem tempo, sem história. 

Além do processo de desumanização de suas imagens nas representações midiáticas que extrapolam o tempo das visualidades da violência, esses sujeitos são lançados em outros espaços para além das fronteiras da sociedade, espaços estes onde, além de eles habitarem o cárcere, também lhes é negado um discurso público à dignidade. 

Ao percorremos essa experiência enquanto espectador de uma obra viva e pulsante como os filmes realizados nesses espaços, buscou-se compreender uma parcela das representações de direitos, silenciamentos e sonhos que percorrem as imagens dos jovens. Ao questionarmos como essas potências poderiam se perfazer no campo em expansão das pedagogias das imagens, somos provocados a olhar para essas cartas, buscando encontrar qual mensagem se encontra para além das falas, das músicas, das danças? O que surge de resistência dessas heterotopias? Como funciona a espacialidade em um lugar onde a suspensão da liberdade é medida através das grades? 

 

Bibliografia

[1]  RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. 192 p

[2] MIGLIORIN, Cesar & PIPANO, Isaac. Cinema de brincar. Relicário, 2019.

[3] https://www.cineduc.org.br/

[4] https://cinead.org/

[5] https://www.redekino.com.br/

[6] http://www.inventarcomadiferenca.com.br/

[7] BERGALA, Alain. A hipótese-cinema. Booklink. 2008.

[8] Para assistir aos vídeos produzidos pelos diversos parceiros, acessem https://vimeo.com/inventarcomadiferenca

[9] Os fragmentos de imagens que serão listados a partir daqui foram retirados de práticas realizadas em três polos: Belo Horizonte, Vila Velha e Recife. Os vídeos estão disponíveis no link do vimeo referendado anteriormente. 

[10] RANIERE, Édio. A Invenção das Medidas Socioeducativas. Tese – Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, p. 196. 2014.

[11] BUTLER, Judith. Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto?. Civilização Brasileira, 2015.

[12] YOUNG, Jack. A sociedade excludente. Editora Revan, 2003.

[13] DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tomam posição: O olho da história, I. Belo Horizonte: Editora Ufmg, 2017.

[14] Embora a nomenclatura atual recuse o uso do termo presídio, nos parece politicamente necessário pensá-lo enquanto tal como um dispositivo disciplinar.  

[15] FOUCAULT, Michel. O corpo utópico, As heterotopias. 1. ed. São Paulo: N-1 Edições, 2016. 

[16] BOAL, Augusto. A estética do Oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

 

*Imagens fornecidas pelo autor do texto.

O texto é parte integrante da Revista Tantas-Folhas, edição v.2, n.2 (2021)


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Bruno Teixeira Paes

É carioca, mas reside em Belo Horizonte desde os seis anos. Gosta de quadrinhos, filmes, jogos de tabuleiro e encontros com os amigos. É músico introspectivo-amador, pesquisador em Educação e entusiasta das experiências de cinema na educação. É formado em Educação Artística (UEMG); mestre em Educação (UEMG), com dissertação referente ao ensino de arte na Educação Básica; e doutor em Educação (UFRJ), com a tese centrada nas experiências audiovisuais na Educação. Já atuou como professor substituto ao ministrar disciplinas no curso em licenciatura em Cinema e Vídeo (UFF). Participou como tutor nos cursos de formação audiovisual e de educação profissional, promovidos pelo Programa Aprendiz Legal, da Fundação Roberto Marinho.

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