TANTAS-FOLHAS
Cinemateca brasileira

Cinema Brasileiro: o inimigo tem nome e mora em Brasília


Sempre foi difícil fazer cinema no Brasil. Porém, em passado recente, havia políticas públicas específicas do governo federal para estimular essa atividade e os profissionais que nela atuam. Até 2016, por exemplo, o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) potencializou a produção do Cinema Brasileiro por meio de recursos vindos da arrecadação da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine) e do Fundo de Fiscalização das Telecomunicações (Fistel). 

Na continuidade, para fortalecer o setor, pensava-se em ativar duas frentes de luta: ampliar a distribuição de projetos nacionais utilizando a Teoria da Cauda Longa sobre as diversas janelas do audiovisual; apoiar as pequenas produtoras, com foco na construção de uma indústria permanente.

Os números provam que o audiovisual brasileiro é uma indústria que gera  milhares de empregos diretos e indiretos, fato relevante diante do crescente desemprego no país. Está mais do que comprovado que a Cultura no Brasil tem grande peso econômico: até recentemente, a economia criativa era responsável por injetar nada menos do que R$ 171 bilhões anuais na sociedade brasileira. Não é pouco não.

Porém, esse cenário de possibilidades construtivas degringolou com o Golpe de 2016. A partir dali, já no governo Temer, começaram os cortes de verbas e o desmonte das estruturas. Inimigo das artes e da Cultura (assim como da Ciência, da Educação, dos pobres, dos negros, dos índios, das mulheres, dos gays, dos idosos), o “governo” Bolsonaro acelerou e aprofundou o desmanche do setor. E mais: quer mantê-lo sob controle, interferindo na produção e na indicação de filmes para participar de festivais importantes no exterior. 

Bolsonaro atira para matar o Cinema Brasileiro

Meses atrás, incomodado com o filme Bruna Surfistinha, o presidente afirmou: “Se não puder ter filtro [nas produções brasileiras que pretendem receber fomento público], extinguiremos a Ancine. Não pode é dinheiro público sendo usado para filme pornográfico (sic)”.

A revista Carta Capital, em 23/2/2020, publicou matéria em que cita o jornal Le Monde a respeito desse duelo entre Bolsonaro armado de poder e caneta Bic versus Cinema Brasileiro: “Para o diário francês, uma das principais vítimas das decisões do governo brasileiro é o cinema”. Continua: “O jornal destaca que a Ancine (Agência Nacional do Cinema) é um dos principais alvos do governo e Bolsonaro já evocou diversas vezes seu desejo de acabar com a instituição. Enquanto esse objetivo não é colocado em prática, o orçamento do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), que permite o financiamento de filmes no Brasil, sofreu um corte de 43% em 2020. Um desastre para um setor que emprega 300 mil pessoas e injeta na economia R$ 25 bilhões por ano, mas cuja dependência à ajuda do Estado é muito forte”.

A Carta Capital prossegue: “O resultado, segundo o Le Monde, é que a Ancine está paralisada atualmente, com mais de quatro mil projetos de filmes e séries, à espera de um financiamento. O texto afirma que os cortes no setor não são realizados por uma questão de economia para o governo, mas sim porque o governo tem interesse em incentivar apenas projetos alinhados com ele. ” Ou seja, monitoramento ideológico e censura. Postura obviamente inconstitucional, antidemocrática. 

Ancine
Foto: API

Bolsonaro quis até mesmo tirar a Ancine de sua sede no Rio de Janeiro e instalá-la em Brasília, mais perto de suas garras. Seus prepostos chegaram a retirar cartazes de filmes brasileiros que emolduravam as paredes da instituição desde 2002. Filmes também foram retirados do site oficial, gesto de violência cujo objetivo parecia ser o de apagar da história e da memória do público as produções do Cinema Brasileiro. Houve imediata reação popular, com a criação da campanha #OCinemaBrasileiroEmCartaz e sua divulgação nas redes sociais. Pessoas também saíram às ruas com cartazes de filmes brasileiros nas mãos, em protesto contra as ações destrutivas do “governo” Bolsonaro. 

Cinemateca
Mariana Ximenes usa vestido com cartazes de filmes brasileiros na abertura do Festival do Rio. Fonte: 10/12/2019. Instagram: Reprodução

Cinemateca

Junto a essa perseguição à Ancine, é cruel, obtuso e inacreditável o que vem sendo feito com a Cinemateca Brasileira, sediada em São Paulo. Em 14/8/2020, reportagem da Rede Brasil Atual informa: “Na última sexta-feira, (7), a Secretaria Especial de Cultura, sob chefia de Mario Frias, tomou as chaves da Cinemateca, numa ostensiva operação que teve até homens fortemente armados da Polícia Federal. A intervenção veio após abandono de mais de seis meses da instituição. Neste período, o governo federal rompeu o contrato com a Fundação Roquette Pinto (Acerp), mantenedora da Cinemateca, de forma unilateral, e cessou os repasses para a continuidade dos trabalhos. ” 

Continua: “De ontem (13) para hoje, foram anunciadas as demissões do pessoal técnico da instituição. São mais de 100 anos de história do maior acervo audiovisual da América Latina (mais de 250 mil rolos de filmes) em risco.

A deputada federal Alice Portugal (PCdoB-BA), denunciou:  “A Cinemateca é a principal instituição de preservação da memória do cinema brasileiro. Todos os 41 funcionários foram demitidos! São técnicos altamente especializados em preservação que trabalhavam lá há décadas. Bolsonaro quer um país sem memória, sem cultura, sem educação.

Um crime de morte, gravíssimo, está sendo cometido contra o Cinema Brasileiro.

Cinema Brasileira
Fonte: Patricia Borges/ AM Press & Images/Estadão Conteúdo. O corpo de funcionários da Cinemateca tem especialistas que trabalham na casa há anos, e em alguns casos, décadas

Desinformação cultural

Por outro lado, infelizmente, há pessoas que ainda têm visão preconceituosa sobre a arte cinematográfica nacional, mesmo depois de fatos e números provarem que a produção de filmes no país, apoiada em editais e patrocínios ou realizada de maneira independente, tem se mostrado bastante positiva à economia brasileira.  E destaque-se aqui o reconhecimento que filmes brasileiros têm recebido no exterior, por meio do aplauso do público, da aprovação da crítica e de premiações conquistadas nos diversos festivais de cinema ao redor do mundo. 

Por esse ponto de vista, podemos concluir que estrangeiros conhecem e respeitam nossa produção audiovisual melhor do que muitos brasileiros. É uma pena e um desperdício doloroso que seja assim, pois há muitos filmes nacionais plenos de consciência artística, tratamento imagético criativo, com narrativas potentes, visões humanitárias, recortes profundos e paletas de cores diversificadas, com provocações necessárias e intervenções estéticas, políticas e sociais que refletem a natureza sensorial do país e o querem melhor para todos.

Filmes brasileiros contemporâneos: quantidade e qualidade

Na lista a seguir apresentamos vários filmes brasileiros contemporâneos, como forma de agradecer aos diretores por sua arte e para divulgar profissionais que trabalham nesse setor também muito castigado pela Covid-19. 

“Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Filme que fez bonito em Cannes, junto com “A Vida Invisível”, de Karim Aïnouz. Os dois filmes conseguiram ser indicados aos principais prêmios do festival, fato inédito para o Brasil. O primeiro habita um país pobre, carente de quase tudo; o segundo retrata a vida de duas mulheres separadas pelo machismo brasileiro. 

“Dias Vazios”, de Robney Bruno Almeida, tem como tema a adolescência, em abordagem sem maquiagem e clichês. Esteve na Mostra Tiradentes, no Cine PE e em outros festivais. 

“Animal Cordial”, de Gabriela Amaral Almeida, trabalha o terror em uma trama consistente e com personagens absolutamente viscerais. 

Filmes de Plástico
Imagem: No coração do mundo, da produtora Filmes de Plástico.

“Gabriel e a Montanha”, de Fellipe Gamarano Barbosa, consegue trazer para o cinema brasileiro uma África real e um personagem vivo, convincente. O filme nos leva a mergulhar em um universo brasileiramente africano ou africanamente brasileiro, fazendo com que todos aqueles atores, que nunca foram atores, vivam na tela o que realmente vivem no seu dia a dia. 

“O Lobo Atrás da Porta”, de Fernando Coimbra. O diretor sabe o que fazer, como fazer e quando fazer para criar uma obra artística deslumbrante. E entreter o espectador.

Mais filmes que merecem ser citados. “Benzinho”, de Gustavo Pizzi; “Estômago”, longa de estreia do diretor Marcos Jorge; “Divino Amor”, de Gabriel Mascaro; “O Cheiro do Ralo”, de Heitor Dhalia; “Redemoinho”, de José Luiz Villamarim; “O Som ao Redor”, de Kleber Mendonça Filho; “Sinfonia da Necrópole”, de Juliana Rojas; “Ferrugem”, de Aly Muritiba; “Vermelho Russo”, de Charly Braun; “Casa Grande”, de Felipe Gamarano; “O Silêncio do Céu”, de Marco Dutra; “Arábia”, de Affonso Uchôa; “Bingo: O Rei das Manhãs”, de Daniel Rezende; “Pacarrete”, de Allan Deberton; “Boi Neon”, de Gabriel Mascaro. Destaque especial para a produtora Filmes de Plástico, com “No coração do mundo”, de Gabriel Martins e Maurílio Martins; “Quintal” e “Ela volta na quinta”, ambos de André Novais Oliveira. Todos excelentes, cada um à sua maneira. 

Como se vê, há aí qualidade em quantidade. O cinema brasileiro está vivo. Apesar do coronavírus e dos vírus políticos que por ora habitam Brasília. 


O texto é parte integrante da Revista Tantas-Folhas, edição v.1, n.1 (2020)

Shelmer Gvar

É natural de Belo Horizonte. Começou sua carreira artística nas artes cênicas (dramaturgia e interpretação). Pesquisou, praticou e montou trabalhos no Núcleo de Estudos Método Stanislavsky e Núcleo de Estudos Shakespearianos. Estreou no cinema participando do longa-metragem O Aleijadinho – Paixão, Glória e Suplício, de Geraldo Santos Pereira, lançado em 2000. A partir daí, passou a realizar e fundou, em 2010, a produtora audiovisual Operários da Alma, focada em pesquisa de linguagem, temáticas sociais e experimentação artística.

Paulo Vilara

Graduado em História, jornalista, autor dos livros Manhãs com pássaros – Exercícios de síntese (2015); Jazz! Interpretações – Pequenas histórias de fúria, dor e alegria (2011); Palavras Musicais – entrevistas (2006); Congresso Internacional da Bicharada (1996). Tem textos publicados nos livros Os filmes que sonhamos (2011); Histórias da Rua da Bahia e da Cantina do Lucas (2002); Presença do CEC – 50 anos de cinema em Belo Horizonte (2001) Cinema em palavras (1995). Dirigiu documentários: Mil sons geniais (2004) ; Guignard - A educação do olhar (1996); Cataguases - Um olhar na modernidade brasileira (1988); Dona Izabel - A magia da criação (1985); Carlos Chagas. O passado presente (1981). Ver mais Bibliografia Paulo Vilara. Foto: Pedro Kirilos.

2 thoughts on “Cinema Brasileiro: o inimigo tem nome e mora em Brasília

  1. Por que não faz como nos EUA?

    Mamar é uma delícia, não é? Na tetas do Estado. Eu também gostaria. Isso é sinal que talvez nem seja arte esses filmes aí… Mas dependência.

  2. Como é triste ver tanta ignorância quanto a de um desqualificado que desgoverna o Brasil como de seguidores chucros como esse rivellino. O que sobrará do Brasil quando esse câncer for embora????Eu tenho Orgulho do Cinema Brasileiro!!!#ForaSatanaroGenocida

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