Baden Powell, um varre-saiense internacional
Foto: Fernando Krieger IMS – via Arribação.
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Dá licença de começar como o bruxo? – Nonada. Batuque que o senhor ouviu, assim maravilhado, eram os 40 dedos do violonista, Baden, aquele um de Varre-Sai, tocando na vitrolinha. A mão direita nervosa, veloz, treinada com pedras no pulso, o senhor sabe? Soube? Sabia? Apois, para o cantador e violeiro só hay três coisas neste mundo vão: amor, forria, viola. Somatório de alegrias.
Uma coisa, sim, era gênio. Mas gênio precisa de berço, berço tem que ter raiz, raiz é o sentimento do tempo, os amálgamas da época. O que vem misturado com o viver, que embrulha tudo. Para haver Baden, houve, antes um Lilo, e antes de antes, o Vicente Thomás de Aquino, seu avô. Maestro que seguiu o interior de um rio, o Paraíba, e veio desaguar no riacho da vila, caminho inverso. Eu conto. Era no tempo do Onça. Da zagaia de gancho. Quando arregimentou filhos de ex-escravizados e formou sua Orchestra Negra. Daí, um outro maestro, de nome Carolino, chamou Vicente, de lado, cidade de Bom Jesus do Itabapoana, e disse: – Tem uma lira precisando de maestro. Vicente aceitou, desfez a bandinha, e veio. Criou família. Cabeça repleta de sons, que muito ouviu pelo estado afora, além dos tantãs de periferia. Tambores. Era um cabedal de memória, que passou para a família. Especialmente Lilo de Aquino, seu filho, que cedo aprendeu violino, vai vendo, faz sentido, e assim, a família acumulou mais e mais o sentimento da época, o som feito pelos negros, que preparou o berço do gênio, com acalantos.
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Uma família formada no júbilo, na alegria. Lilo (aqui, na cidade, conhecido como Tique) agregava, portas abertas para os saraus, a música, as animadas noites. Egite, uma das irmãs de Lilo, afirmava que ele era um grande contador de anedotas, todos se alegravam em sua companhia. Em Varre-Sai, dividia-se entre a música (participou, inclusive, como membro de um conjunto musical, o Futurista Jazz, que se apresentava também em outras cidades, como violinista) e em seu ofício cotidiano de coureiro, consertar sapatos e até criar modelos exclusivos. A necessidade de maiores ganhos financeiros o levou a se mudar de Varre-Sai para o Rio, acomodando-se em São Cristóvão, bairro chave para o contato com os grandes compositores, músicos, instrumentistas, gente do choro e do samba. Sua casa, no Rio, era frequentada por Pixinguinha, Donga, João da Bahiana, e outros. Neste ambiente, Baden cresceu. Não podia participar dos saraus: ficava em seu quarto batucando as músicas que chegavam da sala. Batucava na porta do guarda-roupa e, tantas foram as vezes, que treinou sua mão com aquelas batidas rítmicas. Olha os tambores se incorporando às mãos. Isso, futuramente, faria grande diferença na técnica e no espírito do garoto. Os sons daqueles pretos animados moldaram seus gostos, preferências e sua alma. As sementes plantadas por Vicente, na família, frutificaram e foram bem regadas por Lilo. De tal forma que, Baden, aos 8 anos, já conhecia em profundidade, as músicas mais autênticas brasileiras.
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Já é suficientemente divulgada a história de como Baden teve seu primeiro contato com o violão. Sua tia, Vivina, ganhara um violão numa rifa e o pendurara na parede. Baden, criança, olhava o instrumento e pensava: – Se pego este troço eu toco! Um dia, roubou o violão da parede, enrolou-o num pano e o levou para sua casa, escondendo-o debaixo da cama. Um outro dia, sua mãe o ouviu tocar e contou ao marido. Lilo foi verificar o acontecido e imediatamente percebeu que o garoto tinha mesmo queda para o violão. Fez-lhe pedir desculpas à tia e devolver o que roubara. A tia perdoou a infantilidade e ainda lhe deixou o violão como presente. Lilo decidiu ensinar alguns dó-ré-mi-fá ao filho, mas este aprendia tão rapidamente que o pai tomou a decisão de levar Baden para tomar aulas com um bom professor que ele conhecia: tratava-se de Jaime Florence, o Meira. A partir desse feito, Baden tornou-se um violonista destacado, ganhando o primeiro lugar no programa radiofônico Papel Carbono, sob comando de Renato Murce, aos 9 anos de idade. Acompanhou Renato e a cantora Eliana em diversas apresentações. Futuramente, trabalhando em uma boate, no Rio, conheceu Vinícius, Tom Jobim, Ari Barroso e outros. Compôs uma música com Billy Blanco, que fez grande sucesso: “Samba Triste”. Começava uma carreira vitoriosa que atingiria a fantástica marca de mais de 30 discos gravados internacionalmente, celebrado como um dos maiores violonistas do mundo.
1999. A última visita de Baden à sua cidade natal.
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Baden e Varre-Sai, como se processou este vínculo? Evidentemente, um vínculo familiar, passado por gerações. Vicente, o avô e Lilo, o pai, amavam Varre-Sai. Por sinal, Lilo incutiu em Baden o amor à cidade. Baden falava muito sobre isso. Esteve quatro vezes por estes cafundós. Da primeira vez, em 1967, veio com sua esposa Tereza. Foi recepcionado, na chegada, com a Lira Santa Cecília. Já era famoso. Os moradores mais antigos se orgulhavam de que um varre-saiense estivesse ocupando revistas, jornais e fazendo sucesso nas rádios e tevês. Os mais jovens, admirados com a estonteante beleza de Tereza. E ainda: o carro vermelho, sem capota, de Baden (um Karman Ghia?) Hospedou-se no único hotel que havia na cidade. Mas, por onde passava, aquela curiosidade provinciana de todos.
Da segunda vez, hospedou-se na casa do Dr. Getúlio. Veio também com sua tia, Vivina, uma varre-saiense. Ao acordar, Baden tomava o rumo de um bar próximo e bebia uma boa dose de uísque, depois o café. Vivina, mais tranquila, preferia tomar um chá de mate. Isso, em princípios dos anos 1970.
Da terceira vez, veio por conta das comemorações do centenário de Varre-Sai, em 1979, quando definitivamente entrou em contato com a cidade. Arroz de festa em todos os eventos. Participou até de reunião para criar condições de melhorias da cidade, um luxo! Mas o que deixou a cidade encantada (e o próprio Baden) foi a apresentação pública de alunos de violão do Professor Agiel Rampazzio. Momento mágico: o gênio do instrumento saudado pelas crianças aprendizes.
Quem viu, traz a emoção até hoje nas recordações. Demais, né? Nesta época veio com seu filho Philippe, com um ano de idade. Quando a Lira Santa Cecília desfilou pelas ruas, colocou seu filho num carrinho de bebê e acompanhou o desfile. De repente, o menino começou a aplaudir os músicos. Baden retornou para a casa aonde se hospedava, emocionado: – Ele aplaudiu, pela primeira vez, os músicos!
Viria mais uma vez, em 1999, poucos meses antes de sua morte, no ano 2000. Já estava debilitado, não bebia mais, tornara-se evangélico. Hospedara-se na casa da irmã do Dr Getúlio, Dona Memélia (que também o recebera em 1979), de quem se tornara grande amigo, aliás, uma amizade das famílias desde antes do nascimento do violonista. Segundo Maria da Conceição Vargas (filha de Dona Memélia), Baden gostava de ficar próximo de um fogão de lenha que havia na espaçosa e confortável casa. Ali, sentava-se para aproveitar o calor do fogo e relembrar fatos de sua trajetória como artista de fama nacional e internacional. Certa vez, Conceição, que morava no Rio, assistia a um programa na TV Cultura, um especial sobre Baden Powell. Ligou para a mãe, em Varre-Sai, e a avisou do especial. Dona Memélia respondeu-lhe: – Óh! Ele está aqui do meu lado! E ligaram a tevê para apreciarem o programa indicado.
(clique aqui para ver um documentário francês sobre Baden Powell, no qual ele visita Varre-Sai)
Álbum de fotos
Fotos: acervos pessoais de Gonzaga Abib e Maria da Conceição Vargas.
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Jose Antonio Abreu de Oliveira
Nasceu no interior do estado do Rio de Janeiro, em Santa Clara, distrito de Porciúncula. Atualmente, reside em Varre-Sai. Cirurgião-dentista. Mestre em Saúde Pública pela FIOCRUZ, apaixonado por literatura brasileira e pelos clássicos universais, assim como pela cultura popular, a fala e os costumes do povo. Tem um livro lançado (Crônicas Velozes), publicações em livros coletivos, blogs de cultura, jornais e revistas. Primeiro prêmio de poesia da Fundação Pascoal Andreta. Tem 65 anos e até hoje vasculha as roças procurando jabuticabas, causos e mexericas.
Ótima crônica, é muito bom ouvir uma outra história de Baden Powell contada do ponto de vista de um fluminense que vive em Varre-Sai. Aliás, essa cidade deve ser muito interessante! Parabéns para o autor do texto e os editores da Revista.
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Agradecemos seu comentário e os elogios, Marilia Andrés Ribeiro. Esperamos que você continue sendo leitora de Tantas-Folhas.