TANTAS-FOLHAS
Cabaré Mineiro

Cabaré Mineiro: o sonho | LadoBeagá


Cabaré Mineiro
Foto: Marcilio Gazzinelli (via Tadeu Rodrigues).

Na Oficina Mágica, a rotina rolava mansa como a chuva fina que caía, descendo as ladeiras do bairro São Pedro em direção ao Centro.

O ateliê Oficina Mágica ocupava parte de uma dessas casas coladas na calçada, típicas dos anos 1950, com entrada pela lateral, sem a mínima chance de ter um palmo sequer de jardim. As janelas – três indigestos basculantes a que éramos obrigados a engolir em nome da bendita (in)segurança. 

Lá dentro, duas almas inquietas, derrubavam, com cores, paredes conservadoras, pintavam saídas estéticas para que o ar livre da arte pudesse circular. 

Éramos, eu e Mário Vale, os hospedeiros dessas almas desassossegadas. 

Estávamos em meados dos anos 1980. O tempo clareava. A névoa da ditadura dissipava-se pelos ventos das Diretas já. 

No meio daquele tempo incerto, de transição duvidosa, surgem dois amigos nossos, Cláudio Rocha e Tadeu Rodrigues. Traziam um sonho nas mãos.

 

Uma casa da noite e suas fantasias. Ave noturna à caça de vida e prazer.

 

Entraram e, em volta da mesa, foram repartindo aquele pão de ideias acabado de sair do forno. A forma, veio traçada pelo arquiteto Milton Castro, o Miltinho, inspirado no teatrinho de Sabará. O sonho era uma casa viva, sensível, pensante, poética, artística. Uma casa que come e bebe, fala, canta, toca e dança. Uma casa que se emociona. Uma casa da noite e suas fantasias. Ave noturna à caça de vida e prazer. 

Mas, com tanta vida, tanta energia, ainda assim, faltava algo que os donos do sonho foram buscar ali. Nossos amigos sabiam que na Oficina Mágica encontrariam o que buscavam: cores.

Eles se foram e nos deixaram a sensação de estarmos na estação de embarque para uma grande viagem. Uma viagem como jamais havíamos imaginado. Para quem andava à caça de novas expressões da arte, de novos suportes, novos desafios, aquilo deixava na boca o sabor indescritível do novo. 

Para celebrar momento tão especial e o início dessa nova viagem, nada como lançar nossos agradecimentos, por sinais de fumaça, aos deuses da arte.

Na sequência, saímos da Oficina para matar a sede de cerveja gelada no Bar do Fernando, aonde chegávamos sem mudar de calçada, descendo a São Domingos do Prata e virando à direita na Major Lopes. No minúsculo quadrado do “buteco”, sentávamos em uma das duas mesas, nos equilibrando em troncos de árvores transformados em bancos e lixando as costas na parede de chapisco. O sacrifício valia a pena. A porção de pastel era a melhor da cidade e o atendimento e atenção do salva-vidas Fernando não nos deixavam morrer de sede. 

Nunca mais a rotina na Oficina Mágica foi a mesma. O levantamento do trabalho deu uma lista quilométrica. Ia da identidade visual à ambientação do espaço, do design gráfico aos layouts dos anúncios, faixas de rua, cartazes. 

As horas no ateliê, desde então, foram dedicadas a colher e interpretar as flores do sonho de algodão macio – cardar, fiar, tingir, tecer as tramas do projeto com fios coloridos.

De tempos em tempos, as linhas traçadas por nossos rastros na cidade em que moramos mudam; assim como a região ou regiões que frequentamos em determinados períodos.

Foi assim com a chegada do sonho. Nosso roteiro passou a incluir a rua Gonçalves Dias, marcando o número 54, entre a avenida Getúlio Vargas e a Contorno. 

As visitas à obra tornaram-se constantes e algumas foram inesquecíveis. Em uma delas, apertamos a mão do terceiro sócio do sonho: Wagner Tiso. Quem assiste a um concerto de piano sabe que um pianista tem mais dedos nas mãos do que qualquer um e é com esse monte de dedos que ele faz cair o queixo da nossa alma. 

Acostumados a vê-lo no altar dos palcos, ouvi-lo nos discos, no rádio, na TV e naquele momento estarmos com ele no barracão da obra, foi muito especial. 

 

A palavra Cabaré é carregada de significados e referências muito fortes. Como ignorar isso? A opção pelo vermelho estava cravada.

 

Eu e Mário andávamos em perfeita sintonia na parceria de criação. A bola rolava fácil e as tabelas funcionavam muito bem. Como já adotávamos as cores primárias em outros trabalhos há bastante tempo, as de sustentação da identidade visual pintaram naturalmente, sem nenhuma dúvida.

A palavra Cabaré é carregada de significados e referências muito fortes. Como ignorar isso? A opção pelo vermelho estava cravada. 

Buscamos o amarelo como ideia de luz e energia e pelo forte contraste com o vermelho. O azul marinho profundo, surge para fechar o trio com harmonia indiscutível. Alguém questionaria Mondrian? 

Toda a fantasia e o imaginário que o nome da casa sugere, abre espaço ao dourado e ao prateado que aplicamos em situações especiais, como no convite de inauguração e na ambientação do salão principal.

Nossas visitas diárias ao local onde o sonho se concretizava eram pura emoção e silêncios reflexivos. Assistíamos a dança anônima dos pedreiros e seu poder de construir sonhos. Paredes subindo, areia, cimento, tijolos. A terra, o barro, a madeira, virando pista e palco, metros e metros de fios, gambiarras se transformando em mesa de som, refletores e iluminação da casa. 

Quando o corpo do sonho estava de pé, o cobrimos com discreto vestido azul acinzentado. Era comedido, comportado, recatado. Porém, todo o recato desaparecia quando a enorme placa amarela com as letras vermelhas tridimensionais gritava para que todos ouvissem: “Cabaré Mineiro! ”

 

As pernas torneadas das colunas calçavam meias azul-marinho intenso. 

 

Se o vestido por fora era discreto, dentro dele o corpo se soltava, se rendia à sedução do vermelho, à energia vibrante do amarelo. As pernas torneadas das colunas calçavam meias azul-marinho intenso. 

O palco, sua atração maior e mais íntima, se cobria de veludo vermelho. Ao se abrir, mostrava a arte explícita dos artistas que se apresentavam ali. Estrelas consagradas, novas e supernovas. 

A partir da entrada, as pessoas iam ocupando todo o espaço, como as águas de uma enchente: as mesas do bar, do salão, do mezanino, empoçavam a frente do bar, degustando chopes e drinks. Dedilhavam sons imaginários no teclado de azulejo do balcão. 

Os coquetéis do Wanderley incorporavam doses de cultura e arte. Diziam as vozes sábias da noite que o “Oficina Mágica” – drink criado pelo barman em homenagem ao ateliê – além de bonito e gostoso, fazia a cabeça.

Na grande parede vermelha em frente ao bar, sete painéis inspirados em vitrines de cinemas antigos, se alternavam em vermelho, azul e amarelo, informavam a programação de segunda a domingo em letreiros móveis.

Quando o veludo vermelho voltava a esconder o palco exausto, o ambiente estava tomado pela atmosfera da arte. Fosse ao final do performático Veludo Cotelê, do show de Cássia Eller – estrela supernova que explodiu pela concentração absurda de talento e energia –, da homenagem à Dona Maria e aos seus filhos Henfil, Betinho e Chico Mário, ou ainda da noite internacional com o fantástico trompetista Wynton Marsalis.

Quem passar hoje pela rua Gonçalves Dias, entre Getúlio Vargas e Contorno, não verá o menor vestígio do nosso Cabaré Mineiro. No número 54 fincaram um edifício de apartamentos, como outros milhares que invadiram a cidade. A casa de tantas noites encantadas foi demolida aos sete anos de idade. Uma criança brasileira que merecia viver, amadurecer.

Mais um sonho de que acordamos, com pancadas violentas de demolição. 

 

 


O texto é parte integrante da Revista Tantas-Folhas, edição v.1, n.1 (2020)

Marcelo Xavier

Artista plástico, escritor, é formado em publicidade pela PUC Minas. Tem 21 livros publicados, sendo 5 adultos e 16 infantis, dos quais alguns receberam os principais prêmios do país. Criou e realizou inúmeros projetos gráficos, produziu e dirigiu programas para a televisão. Trabalhou com cenografias, figurinos e adereços para espetáculos de teatro, música e dança. É carnavalesco e fundador do bloco Todo Mundo Cabe no Mundo.

7 thoughts on “Cabaré Mineiro: o sonho | LadoBeagá

  1. Quando cheguei a Belo Horizonte, vinda do interior, de Três Pontas, encantei-me com a vida cultural e artística da cidade. Não conheci o Cabaré Mineiro, porém, anos depois, conheci o artista educador Marcelo Xavier, com a publicação de seu livro “Construindo Um Sonho”.
    E, confesso, me tornei navegante e usuária dessa barca construtura de sonhos que é a vida e a obra de Marcelo Xavier – inspiração e expressão – criação sempre: sonhar.

  2. Frequentei muito o Cabaré Mineiro, lembro de shows incríveis e um réveillon maravilhoso. Uma das melhores casas noturnas que BH já teve. Inesquecível!!!

Comentários