Um novo centro no imaginário do discurso midiático
Uma nova construção conceitual para estruturar simbolicamente um bloco político emerge do resultado das eleições municipais de 2020 a partir da cobertura da imprensa, consolidando uma narrativa que já vinha se delineando após o primeiro turno. É a ressignificação do “centro”, no espectro político brasileiro, nova concepção que certamente vai orientar a narrativa midiática e as ações para 2022.
No Brasil, o centro político projetado e reconstruído pelo discurso midiático será aquele capaz de aglutinar de ACM Neto a Luciano Hulk, passando por Rodrigo Maia, Eduardo Paes, Bruno Covas, João Dória e Sérgio Moro, além de FHC, é claro. Essa nova concepção que está sendo construída vai mostrar um agrupamento com ares de modernidade, civilizado dentro da concepção neoliberal de civilização, sem gradações. A ideia disseminada será a de que esse espectro busca o equilíbrio, a acomodação, o progresso do país, defende a ciência, é contra radicalismos, pois o brasileiro está cansado de polarizações e quer a rotina de volta.
Sem qualquer nuance ou diferenciação entre esquerda, direita, extrema direita, tudo estará no mesmo balaio dos prejuízos ao país.
Assim sendo, na narrativa que irá se projetar com vistas a impulsionar um candidato alinhado às propostas do establishment, em 2022, o centro à brasileira vai se propor a ser o catalisador do desejo nacional de uma volta à “normalidade” – o que quer que esse conceito ou sentimento signifique.
Portanto, qualquer perspectiva que saia desse entendimento de “centro” será considerado extremado, algo que foge ao equilíbrio almejado, que traz prejuízos, que “polariza”. Os agrupamentos de esquerda e direita serão tratados como polos extremados que prejudicam igualmente o país em busca pela civilidade e pelo progresso. Sem qualquer nuance ou diferenciação entre esquerda, direita, extrema direita, tudo estará no mesmo balaio dos prejuízos ao país. Assim sendo, tais “polos” terão um tratamento combativo por parte da mídia. Também não mais ouviremos se falar em “Centrão”, essa ideia perniciosa, de toma lá dá cá. Todos os “moderados” caberão no novo Centro.
Eliminação dos polos
Como tudo converge ao centro, a existência de polos é algo incômodo, que atrapalha. portanto, a nova ideia de centro comporta também a concepção de que esquerda e direita se equivalem e são polos de radicalismo a atrapalhar o país. Portanto, o caminho da desconstrução será muito bem delineado e construído.
“Segundo analistas, o grande vencedor das urnas este ano foi o centro. No balanço das eleições, foram derrotados, à direita, Bolsonaro, e à esquerda, Lula”, anuncia a reportagem do Jornal Nacional após o segundo turno das eleições – há derrotados e há vencedores; os derrotados estão nos polos. E assim, esse centro ressignificado será o novo grande repertório – ao lado da corrupção, que não vai desaparecer, mas pode perder força – na narrativa midiática que vai dar o tom da retomada da reconstrução nacional pós-pandemia. E para se efetivar, será necessário que não haja polos. Portanto, será necessário tirar de cena, ainda simbolicamente, atores principais no ideário dessas construções, como Jair Bolsonaro e Lula, que serão tratados como polos que se equivalem nos radicalismos.
“Os partidos de linha ideológica de centro foram os maiores vencedores nessas eleições municipais”, anuncia Renata Vasconcelos, do JN, na abertura da reportagem de quatro minutos que passa a mostrar então os vencedores “de centro” – DEM, PSD, PP, REPUBLICANOS, PP, MDB – numa tabela que tem também o PSDB, que perdeu prefeituras.
No jornal Folha de S. Paulo, a mesma construção simbólica:
“No país, PT e Bolsonaro são derrotados”.
O jornal O Globo estampa, na mesma linha:
“Paes e Covas vencem, celebram a política e refutam radicalismos”.
Em alguns exemplos, a construção narrativa mostra a derrota dos polos radicais (que se equivalem) e a vitória de um centro que, na prática da política brasileira, talvez não exista. Mas que está simbolicamente na construção midiática. Retorna à cena, portanto, a construção, no plano da narrativa, de que esquerda e direita se equivalem no radicalismo, ainda que em polos opostos – são radicais num sentido pejorativo em suas ações e propostas e configurações políticas e ideológicas, pouco importando as nuances. Essa ideia de polos que se equivalem em radicalismo começou a ser traçada em meados de 2018, ano eleitoral, antes da greve dos caminhoneiros (em maio de 2018), exatamente colocando Bolsonaro e Lula como os radicais dos polos que precisavam ser eliminados para o bem do país. Àquela época, como visto, não deu certo.
Para a nova narrativa, não interessam as contundentes diferenças entre Bolsonaro e Lula; interessa apenas o pressuposto radicalismo que os une.
No cenário político atual, Jair Bolsonaro e Luiz Inácio são colocados, pelo discurso midiático, como os representantes dos polos radicais que saíram derrotados das eleições. Com a projeção, pelo mesmo discurso, de um novo centro vitorioso e equilibrado. Para a nova narrativa, não interessam as contundentes diferenças entre um e outro; interessa apenas o pressuposto radicalismo que os une. Creio que a narrativa midiática a se construir irá colocar os dois personagens – abissalmente diferentes – sempre próximos, como se, de fato, as biografias se equivalessem.
Ideias-chave do novo repertório
Para que a narrativa se consolide na opinião pública – e formate essa opinião –, é necessário que sejam estruturadas e plantadas algumas ideias-chave, alguns motes a mobilizar os pensamentos e as ações. Vejamos quatro principais (outras poderão se incorporar, certamente):
Política sem ódio – O tema foi efusivamente colocado no discurso de posse de Bruno Covas, prefeito reeleito de São Paulo, e certamente cumprirá um papel relevante tanto na desconstrução da esquerda quanto na desconstrução da direita (a extrema-direita que incomoda, pois o restante se tornou “centro”).
Busca pelo “equilíbrio” – Está sempre presente na fala de alguns dos atores do novo centro
Polos atrapalham – Direita e Esquerda se tornam conceitos equivalentes que igualmente atrapalham o desenvolvimento. Não há diferenças, referências a propostas ou construções ideológicas tampouco nuances a diferenciar.
Fim dos radicalismos – Assim mesmo, no plural, apesar de não fica muito clara a concepção do que seja “radicalismo”. Mas a ideia é que qualquer coisa que destoe da concepção de centro é radical.
P.S.1: Pesquisa Datafolha do dia 14-12 mostra que Jair Bolsonaro mantém aprovação e que boa parte dos brasileiros não o culpa pelo caos da pandemia. Mesmo que a imprensa tenha selado a ideia de “derrota” de Jair Bolsonaro após as eleições – assim como vaticinou a grande derrota de Lula –, pesquisas apontam sua aprovação. Jair é de fato um ator incômodo, fruto da articulação dos núcleos de poder, imprensa corporativa incluída, para afastar o PT do poder. Cumpriu em parte sua função, começa a se soltar demais e precisará ser reconduzido à insignificância de onde veio. Há caminhos que podem ser trilhados nessa desconstrução, mas o trajeto terá desafios, pois Jair gostou muito de brincar de ser presidente. Portanto, o caminho terá de ser muito bem delineado. Ou seja, a eliminação dos polos não será assim tão fácil nessa nova narrativa midiática. Cenas para um próximo artigo.
P.S.2: A recente pesquisa Datafolha sobre o desempenho de Jair na pandemia revela, de modo muito interessante, o papel da narrativa midiática. Como vemos pelo quadro, a partir de abril deste ano, a avaliação ótimo/bom para o desempenho de Jair na pandemia cai, assim como a avaliação regular. Isso começa a se alterar a partir do final do final de julho, começo de agosto, quando a avaliação positiva de Jair volta a subir, o que permanece no patamar até este mês de dezembro. No auge da pandemia, a partir de abril, há uma toada constante na desconstrução de Jair. Ele foi deixado ao natural, livre, leve e solto para falar todas as asneiras e idiotices que quisesse. E tudo era mostrado, em detalhes, sem cortes nem edições. Jair ao natural. Por muito tempo. Todo dia. O que se refletiu na queda de apoio revelada pela pesquisa naqueles meses. Até entrar em cena a parte 2 do grande acordo nacional. A partir de 16 de agosto, há uma reordenação no tom da cobertura: a Covid ganha novo enfoque (perde a dramaticidade, a urgência na cobertura), política e economia desaparecem de cena, temas alto astral passam a ocupar as edições. Nova ordem, novos arranjos. Jair volta a aparecer quase como presidente: comportado, terno impecável, cabelo alinhado, falando manso, sem arroubos, falas editadas, sempre ao lado dos líderes da Câmara e do Senado. Enfim, empacotado adequadamente. O momento já era outro.
Eliara Santana
Jornalista e doutora em Linguística e Língua Portuguesa, na linha de Análise do Discurso. É colunista do portal de notícias Viomundo. Como pesquisadora, participou das atividades do MASClab (Media and Social Change), do Teachers College, em Nova York, com foco na pesquisa em fake news. Faz parte do NAMLE , Associação Nacional Norte-America de Letramento Midiático. Desenvolve oficinas de crítica da mídia e eleições, fake news e desinformação. É pesquisadora associada do grupo de pesquisa Multilinguismo e Interculturalidade no Mundo Digital, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Mantém diariamente o Boletim do JN, análise do Jornal Nacional, blog Eliara Santana.