Pós-verdade: uma nova realidade informacional
A expressão “pós-verdade” é hoje muito usada para descrever o momento que vivemos, tanto no ambiente acadêmico como, também, na mídia, no ambiente profissional e no cotidiano. Ela já vinha sendo usada há alguns anos, mas se tornou efetivamente popular após 2016, ano em que foi escolhida como “palavra do ano” pelo Dicionário Oxford e se tornou diretamente relacionada a dois fatos extremamente importantes para a política mundial – a eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos e a vitória do plano que prevê a saída do Reino Unido da União Europeia, conhecido pela sigla brexit (abreviatura de Britain exit).
Conforme Santaella (2019), o termo “pós-verdade” já havia sido usado por Steve Tesich em 1992, em sua análise sobre a Guerra do Golfo, e estava presente no título de um livro pela primeira vez na obra de Ralph Keyes publicada em 2004. Mas foi em 2016 que a expressão foi intensamente utilizada, designando as “circunstâncias nas quais fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que apelos à emoção e à crença pessoal” (Santaella, 2019, p. 7). A expressão “pós-verdade” busca designar, assim, uma nova realidade de produção, circulação, uso e apropriação da informação, manifestada nas sociedades contemporâneas (Consentino, 2020).
Em relação às suas causas, McIntyre (2018) aponta a existência de cinco fatores, que aconteceram de maneira paralela. O primeiro destes fatores é o negacionismo científico: um fenômeno a partir do qual a autoridade da ciência passou a ser questionada por pessoas comuns, num processo motivado por interesses econômicos de determinados grupos empresariais e corporativos. Tal processo teve início na década de 1950, nos Estados Unidos, quando diversos estudos científicos começaram a associar o fumo ao câncer. Grupos empresariais da indústria do tabaco criaram, então, a Tobacco Industry Research Committee, com o objetivo de financiar “cientistas” que demonstrassem o contrário, que não havia evidências conclusivas dos males causados pelo fumo. O objetivo principal não era invalidar as conclusões dos cientistas de então, mas semear a dúvida junto ao público, gerar confusão. A estratégia foi utilizada depois por vários atores empresariais e políticos em relação a outros temas como o inverno nuclear, a chuva ácida, o buraco na camada de Ozônio e o aquecimento global.
O segundo fator é o chamado viés cognitivo, ou viés de confirmação: uma tendência do ser humano a formar suas crenças e visões de mundo sem se basear na razão e nas evidências, isto é, nos fatos, num esforço para evitar descontentamento psíquico. O fenômeno não é recente, mas tem sua presença ressignificada nos últimos anos. McIntyre explica esse fator a partir de três estudos clássicos em psicologia social conduzidos nos Estados Unidos, nas décadas de 1950 e 1960. O primeiro deles é a teoria da dissonância cognitiva de Festinger, segundo a qual buscamos harmonia entre nossas crenças e ações. O segundo é a teoria da conformidade social de Asch, que postula que temos tendência a ceder à pressão social por nosso desejo de estar em harmonia com os outros. O terceiro é o estudo do viés de confirmação conduzido por Watson, que identificou nossa tendência a dar mais peso às informações que confirmam nossas crenças pré-existentes.
O terceiro fator é a diminuição da centralidade dos meios de comunicação de massa como fonte de informação das pessoas, em detrimento do acompanhamento de notícias e informações por meio das redes sociais, num fenômeno conhecido como desintermediação. Não que os veículos jornalísticos sejam sempre comprometidos com a verdade, mas eles, por sua estrutura institucional e profissional, sempre puderam ser responsabilizados pelos conteúdos produzidos, de forma que não podiam inventar fatos completamente falsos para divulgar – como ocorre hoje sobretudo no ambiente das redes sociais.
O quarto fator, como apontado acima, é a centralidade atingida pelas redes sociais. Elas se tornaram o ambiente privilegiado a partir do qual as pessoas recebem notícias e informações do mundo. E elas são construídas a partir de algoritmos que selecionam o que provavelmente as pessoas querem ou o que concorda com o ponto de vista delas. Outra questão é a existência de redes sociais em que mensagens são disparadas em massa diretamente para os aparelhos das pessoas, sem que se possa monitorar ou se contrapor a elas, numa lógica “subterrânea” de disseminação de informação.
Por fim, o quinto fator é a relativização da verdade promovida pelo pós-modernismo. O movimento pós-modernista desenvolveu-se ao longo do século XX como um movimento artístico, cultural e também filosófico. Entre suas características está o questionamento da ideia de existência de uma verdade absoluta, única, ou seja, não existiria uma resposta absolutamente correta sobre o que cada elemento da realidade significa. A denúncia de que qualquer declaração de verdade seria um ato autoritário, porque sempre ideológica, acabou sendo uma crítica sequestrada por movimentos políticos para dizer que tudo seria ideológico e, portanto, não haveria “verdade”, apenas “fatos alternativos”.
A pós-verdade se relaciona com uma gigantesca disseminação de informações falsas, que estão atuando para moldar a tomada de decisão das pessoas em diferentes esferas (na política, na economia, na educação, na saúde, na religião), em velocidade e quantidade nunca vistas
Além de se identificar as causas do fenômeno da pós-verdade, é preciso também identificar suas características. Santaella (2019) aponta que o fenômeno se estrutura basicamente a partir de dois processos. O primeiro é a formação das “bolhas” ou “câmaras de eco”, nas quais os usuários ficam isolados, fechados a novas ideias, assuntos e informações importantes, sobretudo na política, e acabam tendo contato apenas com visões unilaterais dentro do espectro político mais amplo. O segundo é a disseminação de notícias falsas. Embora isso não seja novidade, o fato novo é a ausência de regulações como aquelas que incidem sobre as instituições jornalísticas, numa lógica em que toda informação teria o mesmo peso ou valor, independente de sua qualidade, de sua checagem e do compromisso institucional por detrás de sua produção.
A pós-verdade se relaciona com uma gigantesca disseminação de informações falsas, que estão atuando para moldar a tomada de decisão das pessoas em diferentes esferas (na política, na economia, na educação na saúde, na religião), em velocidade e quantidade nunca vistas (Dalkir e Katz, 2020). Mas não se encerra, aí, seu significado.
O fenômeno novo é o fato de que, hoje, as pessoas em geral (exceto, claro, uma parcela da população mundial sem as condições econômicas para isso) têm acesso fácil e instantâneo a tecnologias e possibilidades de verificar a veracidade de uma informação, por meio de smartphones, notebooks, desktops ou outros aparelhos.
Uma das questões centrais da pós-verdade é que ela busca designar uma condição na qual atitudes de desinteresse e mesmo desprezo pela verdade se naturalizam, se disseminam, se tornam cotidianos, normais, e até mesmo estimulados
Diferente de outros períodos da história, em que seria difícil ou impossível checar se uma informação, por exemplo, sobre o modo de vida de um país distante era verdadeira ou falsa, atualmente, de casa e em poucos segundos, se pode checar. Mas as pessoas não fazem isso. Aceitam como real, repassam, compartilham e se apropriam de informações sem se preocuparem em verificar. É esse desdém, esse desinteresse pela verdade, numa realidade com tanto acesso à informação, que é o fato novo que a expressão “pós-verdade” busca abarcar (Fuller, 2018).
Uma das questões centrais da pós-verdade é que ela busca designar uma condição na qual atitudes de desinteresse e mesmo desprezo pela verdade se naturalizam, se disseminam, se tornam cotidianos, normais, e até mesmo estimulados. É essa característica que permite que se fale de uma “cultura da pós-verdade” (Wilber, 2018). Nessa mesma linha, mas num foco mais específico, Keen (2008) identifica o que chama de “culto do amadorismo”, uma certa celebração de conteúdos amadores que acaba por anular a distinção entre o profissional e o amador, o que leva ao enfraquecimento de jornais, revistas, indústria musical, cinematográfica e jornalística, com consequente desaparecimento de padrões profissionais e filtros editoriais e o enaltecimento do plágio e da pirataria. Outra análise na mesma linha é a de Frankfurt (2019) que identifica o predomínio do que chama de “conversa fiada”: uma forma de diálogo que, diferente do embuste e da mentira, representa um desrespeito à verdade, um desprezo, em formas de linguagem presunçosas, abusivas e enganadoras, discursos que buscam disfarçar a ignorância de quem os produz e enganar os que ouvem. O crescimento da “conversa fiada” na publicidade, na política e em diversos outros ambientes estaria promovendo um ceticismo em relação à verdade objetiva, na medida em que, diferente do mentiroso que ainda tem a verdade como referência (ainda que para negá-la ou escondê-la), na conversa fiada a verdade se torna irrelevante.
Leituras semelhantes à de Wilber, Keen e Frankfurt são realizadas por outros pesquisadores que, contudo, enfatizam menos a questão cultural e mais a questão política. Nestes casos a leitura é menos sobre as pessoas que atuam de maneira espontânea para a exacerbação da pós-verdade e mais sobre os que atuam planejando, se aproveitando dessa situação. Nestas análises, a intensa circulação de informações falsas e o desinteresse das pessoas pela verdade se tornam um aspecto, um instrumento, de um fenômeno maior, de natureza política.
Justamente nesse ponto se verifica a ligação com as consequências da pós-verdade. As análises mais consistentes sobre o fenômeno da pós-verdade são as que a ligam a um determinado fenômeno político contemporâneo, associado com o enfraquecimento da democracia e ascensão de líderes demagogos com tendências autoritárias e que fazem uso constante de fake news, aproveitando-se do clima de desvalorização da verdade.
Entre as consequências perigosas da vigência do fenômeno da pós-verdade, Kakutani (2018) retoma os argumentos de Hannah Arendt, que defende que o sujeito ideal para um governo totalitário é aquele para quem a distinção entre fato e ficção, verdadeiro e falso, deixa de existir. Para ela, portanto, o perigo último da pós-verdade é a consolidação dos populismos e fundamentalismos, que, por meio da destruição da própria ideia de “verdade”, destroem também a democracia e impõem o medo e o ódio sobre o debate racional.
Diferentes expressões têm sido utilizadas para caracterizar o momento contemporâneo: sociedade do desconhecimento (Serrano Oceja, 2019), era do ressentimento (Fukuyama, 2018), mundo Orwell (Gómez de Águeda, 2019), era pós-democrática (Casara, 2019) e, como apontado acima, era do nacional-populismo (Eatwell e Goodwin, 2019) e o grande retrocesso (Geiselberger, 2017). Todas elas apontam, de alguma forma, para o fracasso das promessas de sabedoria e paz feitas nas décadas de 1960 e 1970 em torno da ideia de “sociedade da informação”, isto é, de uma sociedade melhor a partir da ampla circulação e do amplo acesso à informação.
Além de diagnosticar o problema, é preciso também desenvolver estratégias de intervenção e de combate a seus efeitos perversos. Diversas ações vêm sendo apontadas por pesquisadores de várias áreas: a promoção de competência crítica em informação ou literacia digital, a criação de mecanismos de certificação da veracidade e qualidade da informação, a construção de mecanismos de responsabilização por crimes cometidos por meio de informação falsa, o aumento da visibilidade e circulação dos serviços de checagem, e a mobilização de estratégias para o esclarecimento quanto às bolhas e para sua “perfuração” (Dalkir e Katz, 2020; Ferrari, 2018; Noble, 2018). A efetiva implementação de tais ações é fundamental sobretudo para a manutenção de determinados valores construídos nos últimos séculos: a democracia, a inclusão, a defesa da diversidade, o estímulo a uma cultura da paz. Por isso é fundamental discutirmos, diagnosticarmos e efetivamente combatermos os efeitos nocivos da pós-verdade.
Bibliografia
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CONSENTINO, G. (2020). Social media and the post-truth world order: the global dynamics of disinformation. Cham: Palgrave, 2020.
DALKIR, K.; KATZ, R. (Eds.). (2020). Naviganting fake news, alternative facts, and misinformation in a post-truth world. Hershey: IGI Global, 2020
EATWELL, R.; GOODWIN, M. Nacionalpopulismo: por qué está triunfando y de qué forma es un reto para la democracia. Barcelona: Península, 2019.
FERRARI, P. Como sair das bolhas. São Paulo: Educ; Armazém da Cultura, 2018.
FRANKFURT, H. On bullshit: sobre a conversa, o embuste e a mentira. Lisboa: Bookout, 2019.
FUKUYAMA, F. Identidad: la demanda de dignidad y las políticas de resentimiento. Barcelona: Deusto, 2019.
FULLER, S. Post-truth: knowledge as a power game. London: Anthem, 2018.
GEISELBERGER, H. (Ed.) O grande retrocesso. Lisboa: Objectiva, 2017.
KAKUTANI, M. La muerte de la verdad: notas sobre la falsedad en la era Trump. Barcelona: Galáxia Gutemberg, 2019.
KEEN, A. O culto do amadorismo. Lisboa: Guerra e Paz, 2008.
McINTYRE, L. Posverdad. Madrid: Cátedra, 2018.
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SANTAELLA, L. A pós-verdade é verdadeira ou falsa? Barueri: Estação das Letras e Cores, 2019.
SERRANO OCEJA, J. F. La sociedad del desconocimiento: comunicación posmoderna y transformación cultural. Madrid: Encuentro, 2019.
WILBER, K. Trump y la posverdad. Barcelona: Kairós, 2018.
Divulgação | Para compreender mais sobre este assunto, fique atento à Aula Magna do PGCIN/UFSC, que será ministrada pelo autor do texto:
Link para acesso: Aula Magna PGCIN/UFSC – Infodemia: os desafios da realidade informacional contemporânea – YouTube
O texto é parte integrante da Revista Tantas-Folhas, edição v.2, n.2 (2021)
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Carlos Alberto Ávila Araújo
Professor da Escola de Ciência da Informação da Universidade Federal de Minas Gerais, da qual foi diretor de 2014 a 2017. É doutor em ciência da informação pela UFMG, com pós-doutorado pela Universidade do Porto, Portugal (2011) e pela Universidad de Salamanca, Espanha (2019). É mestre em comunicação social e graduado em jornalismo.