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Era uma vez

Era uma vez


Era uma vez
Praia de Pourville (1881), Claude Monet. Via Wikimedia.

Era no tempo do Rei. Qualquer rei. No Brasil, reinava um tal Sarney, bigodudo, dizem que saqueava os tesouros, nunca vi, só escuto falar, houvera de que somos linguarudos e todos os reis são honestos. Vá saber, pobre nunca sabe, os enganados. E era um tempo em que, jovem, tinha pouca bufunfa no bolso: bufunfa, bolada, bago, bagarote, arame, capim, algum, papel, erva, gaita, grana, luz, massa, milho, trocado, tutu. Essas coisas. E outras. Mas queria conhecer o mar. Daí, ajuntei os trapos e fui indo, fondo. De caronas. Os hormônios dos dezoito anos, em férias, me guiavam. Uma, duas, três caronas de caminhões e caminhoneiros que tomavam arrebites (ribites, diziam). Mantêm o sujeito vigilante maluco, olhos inflamados, nas longas viagens do país imenso, gigante atordoado.O lugar se chamava Setiba. Nos lestes capixaba. Ali, acolá, onde o mar azula feito as asas da graúna, que de tão preta, fica azulada ao sol, um mar pleno, absoluto, excessivo com brilhos pungentes. Pé da gente na areia molhada, me lembro, me alembrou carinhamentos. Tudo sendo vento e blandícia. Conchas. Mergulho ao lado de peixes coloridos. Mar profundo, mar sem fim. Meus olhos marejaram, águas minhas de repente foz que se integra ao oceano. Entrega. Apois. Digo. Depois. Os acontecidos: como contar em acanhadas e curtas palavras? Digamos, tentaremos, tatearemos a emoção prisioneira do tempo, se bem houver talento e estro. Mas adianto: bela como quando a gente abre um livro novo de poemas. Era gente, não poesia, mas era poesia, vocês me entendem? O era-não-era deveras? Uma moça, enfim, quase nua. Praia deserta. E eu, ali, chorando mares.

Quando a vi. Queimada de sol, nem me percebia. Mergulhava. Torcia os cabelos. Sentava-se na areia. Encantei-me. Parecia em profunda solidão, ainda que eu fosse o verdadeiro apartado de tudo. Um caipira das montanhas. Diante de uma deusa jovial, em corpo terrestre, hígido, num reino de mares e desertos. Claro, nunca me aproximaria, causquê deveria ser das ricas, endinheiradas, talvez moradora de alguma imensa mansão, pudera, tal nudez, perfeita, é para poucas. Dividi-me entre o mar e a deusa. Olhava para um e para outra. Sim, o mundo é injusto, cria diferenças, os hormônios não andam nos mesmos compassos, o desejo pode ser inalcançável. Decidi esquecer a jovem, dedicar-me ao possível mar, agora perto, usufruir de sua generosidade líquida. As uvas distantes sempre serão verdes, deixa estar.

Era uma vez
Impressão, nascer do sol (1872), Claude Monet. Via Wikimedia.

O dia transcorreu encantador. Cumprira uma ambição, o oceano tornara-se velho conhecido. Senti fome ao entardecer, me lembrei de procurar abrigo, alguma pousada nos arredores. Alguém me informou de uma, plausível, preços módicos. A grana espremia-se, curta, mas permitia um singelo descansar. Dia seguinte voltaria às montanhas, a meta era aquela feita: conhecer o mar e….voltar. Os pescadores também retornam aos portos. Meus arroubos. Assim, alocado na pousada, fiz rápida refeição vespertina e divisei, adiante, a varanda debruçada sobre o mar. Havia mesas, e redes, e a brisa. Hora de me ensimesmar, sempre o mar ao fim das palavras. Para minha surpresa, no guarda-corpo do avarandado, ela, a moça que me atraíra na manhã!

Olhou-me, admirada, e disse: – Mas que surpresa! Coincidência! Você é o rapaz que estava na praia, tão sozinho! Esperei que fosse me procurar para alguma prosa! Quase fui lá, eu mesma, prosear à toa. Me detive: percebi que você estava em mundos distantes, um olhar dentro do infinito…. Talvez agora possamos conversar!

Felicidade, teu nome é repentino, que explode onde não colocam avisos.

Desçam as lembranças, deixem que escorram fartas. Em tempos mesquinhos, que não se apresentam rápidas saídas, ao menos que algum resquício de saúde, mente sã, momentos gentis, possam nos pacificar por minutos, ou segundos, que sejam. Tudo que nos deixe firmes, muralhas que obstem o absurdo, estrelas que corisquem brilhos em nossos combalidos corações. Toda forma de amor é salvação. Fui salvo, em Setiba, enquanto o século atravessava o mar nas asas das aves e no salto dos peixes. O século, avistei, aquela baleia nadando rumo ao entardecer.   

 


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Jose Antonio Abreu de Oliveira

Nasceu no interior do estado do Rio de Janeiro, em Santa Clara, distrito de Porciúncula. Atualmente, reside em Varre-Sai. Cirurgião-dentista. Mestre em Saúde Pública pela FIOCRUZ, apaixonado por literatura brasileira e pelos clássicos universais, assim como pela cultura popular, a fala e os costumes do povo. Tem um livro lançado (Crônicas Velozes), publicações em livros coletivos, blogs de cultura, jornais e revistas. Primeiro prêmio de poesia da Fundação Pascoal Andreta. Tem 65 anos e até hoje vasculha as roças procurando jabuticabas, causos e mexericas.

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