Bons tempos aqueles, tempos da alegria de Norival Tupini, maestro e dono de cinema em Varre-Sai
Nos anos 60 ainda havia um cinema em Varre-Sai. Frequentei pouco, posto que morava em outra vila, nas proximidades.
Mas, antes de entrar pela vez primeira numa casa exibidora, a curiosidade mordia o gato: como seria um cinema, que tanto escutava falar? Meu pai assistira, em algum cinema sabe-se onde, filmes de Carlitos; dizia maravilhas da experiência. Cascabulho, faria onze anos, nunca beijara uma moça e nem entrara num cinema, precisava experimentar logo essas coisas, afinal já tinha alguns er..digamos..pelos no sovaco e logo, logo viraria adulto, que precisa experiência das coisas importantes da vida! Assim, de homem para homem, chamei meu pai e disse: – Quero ir ao cinema em Varre-Sai! Posso dormir na casa de minha prima Neguita.
Meu pai concordou. Ajeitou a hospedagem. Num fim de semana, ligou seu Jeep esverdeado e me disse: -Vamos, você vai passar o fim de semana com a prima e conhecerá um cinema. Já me informei que o filme não é impróprio. Se fosse com a Bardot ou mulheres de biquíni, você seria proibido de entrar. Se encontrar por lá o dono do cinema, o Norival, diz que breve combinarei com ele sobre a vinda da lira de Varre-Sai a Santa Clara.
Assim feito, acomodado em casa da parente, aguardei a hora da sessão cinematográfica. Que era anunciada por autofalantes espalhados por algumas ruas. Penso que tocava um dobrado, convocando a população para aquele evento: um filme, a hora mais aguardada pelos amantes de cinema da cidade, numa época de raríssimas televisões. Chamava-se Cine Brasil e ficava no início da rua, numa casa baixa e antiga, talvez de pau a pique e, por lá, encontrei uma longa fila aguardando a venda dos ingressos.
Perfilei-me na rabeira. Percebi que, pela rua, aproximava-se uma mulher loura, corretamente penteada de acordo com a moda, os cabelos enformados por laquê, maquiada, sobrancelhas finas e unhas pintadas de vermelho como uma dessas deusas de Hollywood que a gente via nas revistas e que causou um certo silêncio entre os jovens: era a bilheteira. Hoje, com melhor conhecimento do passado, diria que a mulher seguia um estilo próximo ao da Lauren Bacall. Quando chegou minha vez de adquirir o bilhete de entrada no cinema, e observando as unhas vermelhas da bilheteira através do estreito postigo, perguntei se poderia falar com o dono do Cine Brasil, o Sr Norival, para lhe passar o recado de meu pai.
Ela me indicou um quartinho, ao lado, que se acessava por alguns degraus, o sagrado, sacrossanto e mágico recinto da máquina de projeção. Um senhor baixinho, um tanto acima do peso, ocupava-se em colocar o rolo do filme num projetor. Reconheci aquele homem. Era o mesmo maestro da lira que promovia as alvoradas musicais nas festas de Santa Clara, iniciando os três dias de festejos.
Corte rápido. Mudando da água para o vinho, novo enquadramento: plano aberto, contra-plongée, quase perfil. Alvorada em Santa Clara, anos 60, festa da vila. A lira Santa Cecília, de Varre-Sai, tendo à frente o maestro Norival Tupini, inicia seu desfile descendo a ladeira que levará os músicos ao centro da cidade. Estes, tocadores de flauta, fagote, clarineta, trompete, trombone, tuba, bombardino, prato e outros, desfilavam elegantemente entre as adoráveis barracas de bugigangas e o povo espremido nas calçadas para ver a banda passar. Fogos espocavam. A banda criava uma aura de encantamento em sua passagem. Depois que se apresentavam, me lembro bem, e já desfeita a formação, dirigiam-se para um galpão de café onde meu pai, em todas as festividades, providenciava uma refeição matinal para aqueles músicos: café, leite e chocolate, pão e biscoitos. Norival se encontrava com meu pai, conversavam alegremente todo o tempo, agendando futuras apresentações em eventos do lugar.
Norival se tornara, para mim, percebi mais tarde, aquela pessoa aglutinadora cuja principal arte era a de fabricar sonhos e alegrias. Quando me mudei para Varre-Sai, já adulto, compreendi a importância de Norival em lutar por várias décadas pelo cinema, pelas apresentações teatrais, pela presença da Lira em festejos da cidade, eventos, aniversários e, acreditem, alguns cortejos fúnebres. Norival, inspirando-me em escritos de João do Rio, era uma espécie de “alma encantadora” de Varre-Sai. E, parafraseando o mesmo autor, nós que amávamos as casas exibidoras de filmes, tanto quanto as liras e bandas centenárias, partilhamos alguma ligação de irmãos, “nós nos sentimos parecidos e iguais; nas cidades, nas aldeias, nos povoados” porque nos une o amor por pessoas que lutam e aglutinam a alegria de uma comunidade. “É este mesmo o sentimento imperturbável e indissolúvel, o único que, como a própria vida”, deveria resistir ao tempo. “Tudo se transforma, tudo varia – o amor, o ódio, o egoísmo. Os séculos passam, deslizam, levando as coisas fúteis e os acontecimentos notáveis”. Deveria persistir a celebração daqueles que se dedicaram a nos revelar o encantamento. Que torna nossos fardos, quaisquer que existam, mais caroáveis. Um mundo sem sonhos, encantamentos e alegrias valerá a pena? Salve, salve quem conseguiu (ou ainda consegue), não obstante a financeirização da vida, trazer-nos momentos raros de beleza. Salve, salve quem fez disso seu ofício e meta. Evoé, Norival Tupini!
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Jose Antonio Abreu de Oliveira
Nasceu no interior do estado do Rio de Janeiro, em Santa Clara, distrito de Porciúncula. Atualmente, reside em Varre-Sai. Cirurgião-dentista. Mestre em Saúde Pública pela FIOCRUZ, apaixonado por literatura brasileira e pelos clássicos universais, assim como pela cultura popular, a fala e os costumes do povo. Tem um livro lançado (Crônicas Velozes), publicações em livros coletivos, blogs de cultura, jornais e revistas. Primeiro prêmio de poesia da Fundação Pascoal Andreta. Tem 65 anos e até hoje vasculha as roças procurando jabuticabas, causos e mexericas.
Sobre a tela em que aparece o cinema, informa Maria da Conceição Vargas, no site Varre-Sai de Antigamente: ” Óleo sobre tela, de 1981, pintado a partir de uma fotografia do varresaiense José Luiz Teixeira, por Wanderley, seu aluno naquele ano, o qual executou a obra por encomenda”.
“… nós nos sentimos parecidos e iguais; nas cidades, nas aldeias, nos povoados ..”
Me senti “parecida e igual”. Me lembrei de Miguel Burnier e de Baependi, minhas ” aldeias” da infância.
Cinema e banda de música! Alegria sem fim!
Delícia saber que existe um lugar chamado Varre-Sai. Delícia ler esse artigo. Viva Norival!
Eu sou suspeito em falar de Norival Tupini, porque era o meu Pai.
Papai gostava da Vida e das pessoas, não tinha inimigo, era Ferreiro, mas gostava mesmo era de Música e Cinema, as 2 Paixões dele, era um homem que tinha pouco estudo, mas de uma inteligência incrível, ele pensava uns 20 Anos na frente da época em que vivia. Tudo que ele falava naquela época, foi acontecendo vários anos depois, faleceu com 67 anos Em 23 de Abril de 1977. Saudades!