TANTAS-FOLHAS
Poesia

Onde tem poesia tem liberdade | ladoBeagá


Teresa, la Baldoni, telefonou no meio da tarde.

 – Vamos a Ouro Preto!

A voz imperiosa da amiga parecia mais uma convocação que um convite. Mas logo em seguida ela explicaria: “Tem um grupo na cidade que vai lançar uma revista de poesia. Você não pode perder”. Ela estava familiarizada com o meio artístico da cidade, onde estudava escultura com Amílcar de Castro na Fundação de Arte de Ouro Preto (Faop). De minha parte, fazia então 20 anos desde que estivera pela última vez na velha capital mineira, hospedado no internato do Colégio Arquidiocesano. Como “cascudo” trancado no alto da Rua das Cabeças, mal conhecia o lugar, cujas ruas só visitava aos domingos… se obtivesse nota boa em comportamento. Mas e a poesia? Estava em hibernação, meus poemas rascunhados dormindo no fundo das gavetas. Ainda assim, topei.

 Pegamos estrada eu e o ouro-pretano Otávio Ramos, que me garantira pousada no sobrado onde sua mãe, Dona Nídia, mantinha a loja de antiguidades Pedra Menina. Dois poetas inéditos rumo à terra que revelou Dirceus & Marílias e os demais árcades do século XVIII em Minas Gerais. Vila Rica guardava uma rica tradição poética que jovens contemporâneos queriam resgatar, atualizando-a naturalmente. Era uma aventura que prometia.

Em 1977, a festa de lançamento do número 1 de Poesia Livre – título da publicação que trazia poemas impressos em lâminas de papel kraft encartadas em saquinhos de armazém – aconteceu num bar da Rua Direita, tradicional reduto boêmio de estudantes. Com muita cachaça e declamação de versos pelos poetas da terra, até então os únicos representados na revista. Mesmo não tendo participado do lançamento do segundo número – acontecida num vagão do trem que ligava Ouro Preto a Mariana – embarquei na ideia e em pouco tempo tornei-me colaborador, retirando da gaveta versos até então esquecidos.

 

Poesia Foto: acervo do autor.

 O final daquela década marcava a emergência de infindáveis iniciativas do mesmo gênero que pipocavam por todo o país, cujos jovens ansiavam pela ruptura das amarras criadas pelo regime político vigente, inaugurado em 1964 e endurecido, em 13 de dezembro de 1968, pelo Ato Institucional nº 5, o AI-5. Enviada pelo correio a poetas de outras cidades, e depois para todo o país, Poesia Livre logo chamou a atenção e as colaborações choveram. O ar estava impregnado de eletricidade poética, manifestando-se em versos, na música, no teatro, no cinema. O “saquinho de Ouro Preto” era mais um grito de liberdade entoado no seu próprio título. Era o tempo da “poesia marginal” ou “alternativa” que provocou um enorme tráfego entre poetas pelos Correios. 

 O envolvimento no “projeto”, por meio dos amigos Otávio Ramos e Guilherme Mansur, levou-me a uma colaboração efetiva no trabalho de edição. Durante algum tempo a “redação” transferiu-se provisoriamente para Belo Horizonte, para conforto meu e de Otávio, mas obrigando Guilherme – residente em Ouro Preto – a viagens mensais à capital, onde trabalhávamos juntos. Pilhas de envelopes vindos de todo o país eram abertos e o conteúdo espalhado sobre uma mesa. Nos dedicávamos à seleção, que começava por meio de uma “peneira grossa” dividindo os poemas em três categorias: Céu, Inferno e Purgatório. Não deixava de ser divertido resolver o quebra-cabeças. Publicávamos desde poetas reconhecidos – que nos enviavam inéditos – até anônimos absolutos, alguns deles editados pela primeira vez, e assim revelados.

Poesia
Foto: acervo do autor.

A circulação se expandiu e resolvemos inovar, criando uma seção de entrevistas, algumas delas memoráveis. Guilherme e Otávio tomaram um ônibus para Curitiba para entrevistar Paulo Leminski – viagem que rendeu a Guilherme uma namorada, com quem depois se casou. Tião Nunes e Sérgio Sant’Anna foram resgatados da condição de “poetas do Suplemento” para a “marginalidade” do saquinho. Até mesmo o “príncipe” Affonso Romano de Sant’Anna abriu verbo e coração para Poesia Livre. Memorável foi também a entrevista que realizamos com o esquecido Bueno de Rivera – tido como um dos expoentes da Geração de ‘45 – que contribuiu com um poema inédito, dos muitos que ainda guardava em secretíssimos arquivos.

Poesia
Foto: acervo do autor.

Foi nessa batida que em certa tarde de domingo toquei a campainha de uma casa em Divinópolis. A família estava almoçando, mas levantando-se da mesa, Adélia Prado – então no auge do sucesso – se prontificou a copiar improvisadamente com sua bela letra de professora o inédito que iríamos revelar ao público antes que integrasse um de seus livros.

A face irreverente de Poesia Livre – presente tanto no estilo editorial quanto no atrevimento dos versos publicados – se revelava de maneira especial por ocasião do lançamento à circulação de cada número. Tais oportunidades constituíam verdadeiras celebrações dionisíacas, ora em Ouro Preto, ora em Belo Horizonte, não poucas vezes em ambas as cidades. Uma dessas festas, que reuniu samba & poesia, ocupou durante a noite de lançamento o salão de uma gafieira em que se transformara uma antiga associação profissional criada por anarquistas nos primórdios da nova capital mineira. A moçada que afluiu em grande número – sem que faltassem os malucos de sempre – sambou durante toda a noite ao som da banda que originalmente animava o lugar. Poesia na cabeça e samba no pé.

Poesia
Foto: acervo do autor.

Em outra ocasião música & poesia também se confraternizaram, dessa vez no espaço então na moda em Beagá, o restaurante típico espanhol La Taberna, que dispunha de um anfiteatro destinado à exibição do grupo de dança Soleá Tablao Flamenco mantido pela casa. Perante uma plateia lotada para o lançamento de mais uma edição do saquinho, o cantor e compositor Tunai – até então conhecido apenas como irmão de João Bosco – iniciou sua carreira rumo ao estrelato, oferecendo seu primeiro show de palco, numa apresentação quase profissional, fora de Ouro Preto, onde era estudante de engenharia. A ressalva sobre a natureza “profissional” da apresentação é necessária, pois o artista, amigo de Marrege Ramos, irmã do editor Otávio Ramos, generosamente abriu mão do cachê.

Tunai
Foto: Wilson Avelar.

Outra iniciativa belo-horizontina de Poesia Livre foi a realização domingueira, ao longo de vários meses, de um varal de poesia na chamada Feira Hippie que acontecia na Praça da Liberdade, antes de deixar de ser hippie e mudar-se para a avenida Afonso Pena. Eram verdadeiros happenings que aconteciam sob olhar benevolente de Mari’Stella Tristão, administradora do evento que nos abriu o espaço. Chegávamos bem cedo para esticar os cordéis onde eram pendurados livros e revistas alternativos postos à venda, além de poemas escritos na hora pelos poetas que afluíam ao local, atraídos pelos chamamentos feitos por meio de um megafone. “Cheguem, poetas, manifestem-se deixando aqui sua poesia. E compre um saquinho de Poesia Livre, em que o poeta é livre e o leitor também”. Os exemplares levados para venda quase sempre se esgotavam ali e tudo se repetia no domingo seguinte. Como num circo em que o palhaço convoca a plateia para o próximo espetáculo. Ao fechar este capítulo, estou em dúvida se poderia repetir com a mesma convicção aquela convocatória:

                     – Hoje tem marmelada?

                     – Tem sim, senhor!

                     – Hoje tem goiabada?

                     – Tem sim, senhor!

                     – Hoje tem poesia?

                     – Sei não, meu senhor….

 

Galeria Poesia Livre

 

 

Regis Goncalves

Jornalista, escritor, poeta. Publicou os livros de poemas “Queima de Arquivo”, “Opus Circus” e “Trama Tato Texto”; “Raul Belém Machado, O Arquiteto da Cena” (biografia), e “Retratos Erráticos” (perfis). Foi um dos editores de Poesia Livre. Vive em Belo Horizonte.

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