TANTAS-FOLHAS
Paulo Freire

Centro Paulo Freire: presença do educador brasileiro na Finlândia. Entrevista com Juha Suoranta, cientista social e intelectual finlandês


Arquitetura e design inovadores de Saunalahti, inaugurada como a Escola do Futuro na Finlândia. Via Noticías Ead, livejournal, Incrivel Club.

O sistema educacional finlandês é considerado um dos melhores do mundo. Após a primeira divulgação dos excelentes resultados dos alunos finlandeses no estudo PISA (Programme for International Student Assessment), conduzido pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), professores de vários países passaram a visitar as escolas finlandesas ou estagiar lá, para compreenderem melhor o segredo desse sucesso.

O sucesso do sistema educacional finlandês é resultado de uma conjunção de fatores. A Finlândia é um país onde a ideia do bem-estar social e o senso de comunidade são intensos e onde as pessoas gostam de fazer as coisas coletivamente. Isso se reflete também nas escolas, onde não existe uma hierarquia forte entre professores e alunos, que fazem refeições juntos e se cumprimentam pelo primeiro nome. Esta intimidade não diminui o respeito entre eles, apenas aumenta a confiança. Os professores buscam também proximidade com os pais, que são logo avisados quando um aluno falta às aulas ou não está apresentando bom desempenho.

Outro fator positivo é que a profissão do professor é altamente valorizada na Finlândia. As provas de admissão são complexas e poucas pessoas, realmente talentosas, conseguem corresponder aos critérios de seleção. Depois de formado, um professor escolar ganha entre 3.000 e 4.500 euros por mês [Nota: o salário médio mensal líquido na Finlândia é de 2.400 euros] e sua carga horária semanal de trabalho varia entre 18 e 24 horas, dependendo da escola e da matéria. 

Um grande diferencial do sistema finlandês é que docentes, escolas e cidades decidem, por si próprios, o que ensinar ou não. O currículo finlandês baseia-se em sete competências centrais: 1) Aprender a pensar e a aprender; 2) Formação cultural, interação e expressão; 3) Auto respeito, autocuidado, autorreflexão; 4) Competência para leitura, multilateralismo; 5) Competência digital; 6) Competência para a vida profissional e empreendedorismo; 7) Responsabilidade por um futuro sustentável.

 

Os finlandeses acreditam firmemente que o aprendizado não se dá apenas em sala de aula. 

 

Os docentes têm autonomia para aplicarem esses princípios em suas matérias, com métodos variados. O importante é estimular o pensamento crítico, a interatividade, o uso de novas tecnologias, a autonomia e a desenvoltura da criança e sua capacidade de se adaptar a um mundo em constante alteração. O professor não é considerado o transmissor do conhecimento. Ele simplesmente acompanha o estudante no seu aprendizado. 

Para os finlandeses, nenhuma matéria pode ser considerada mais importante do que outra. Todas têm seu significado especial. O essencial é proporcionar ao aluno uma formação ampla. Os docentes desenvolvem projetos interdisciplinares, que abrangem várias matérias diferentes. Há aulas também de trabalhos manuais.

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Sala de aula de educação infantil na Finlândia. Via El País.

Os objetivos e metas do aprendizado e os critérios de avaliação definidos no currículo são explicados aos alunos e discutidos com eles. Depois disso, os alunos escolhem os cursos e matérias que querem frequentar e montam, sozinhos, seu plano escolar semanal. Quando não se saem bem num curso, podem repeti-lo. Se alguém adoece, pode retomar o curso no estágio em que o interrompeu, para não precisar repetir o ano inteiro. O dia letivo é geralmente de quatro horas a seis horas (os alunos mais novos têm 20 horas por semana e os mais velhos cerca de 30 horas semanais), e raramente o aluno recebe dever de casa. 

Os finlandeses acreditam firmemente que o aprendizado não se dá apenas em sala de aula. O que meninos e meninas aprendem fora da escola é discutido depois com os professores e pode ser incorporado nos projetos educacionais. A aula, portanto, não está restrita a quatro paredes. A depender do tema, o aluno pode escolher onde aprender e se ele quer ficar sentado ou não. As crianças que não conseguem aprender sentadas não são castigadas. Elas podem ficar em pé e, mesmo assim, participar ativamente das aulas. A atmosfera em sala de aula é livre do medo.

 

As instalações são 100% adaptadas às crianças com deficiências

 

A arquitetura dos prédios escolares é concebida para possibilitar que o aprendizado se dê em toda parte. Em qualquer canto da escola, podem-se ver desenhos e colagens feitos pelas crianças. Além do mais, as instalações são 100% adaptadas às crianças com deficiências.

A digitalização do ensino é um aspecto fundamental. Provas são escritas no laptop com ajuda de um programa especial, o que ajuda o professor a ganhar tempo nas correções. Outros programas são bloqueados, o que impede os alunos de surfarem paralelamente na Internet ou colar das suas anotações. Robôs poliglotas, que falam sem sotaque e lentamente, são usados em aulas de idiomas para ajudarem na aprendizagem de vocábulos. Como não julgam nem castigam, tiram o medo da criança de aprender uma nova língua. Além disso, os estudantes têm acesso a vários livros digitais.

De um modo geral, as turmas são pequenas. Quando alunos apresentam dificuldade em ler ou escrever, os professores recebem o apoio de assistentes. As escolas também dispõem de bons psicólogos e enfermeiros. 

 

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Educação de jovens na Finlândia. Via Getty Images.

Certamente, um dos fatores decisivos para o sucesso do sistema educacional finlandês é o aspecto social. Escolas com muitos alunos que não falam o finlandês ou que vêm de famílias pobres recebem mais verbas, que elas podem aplicar do jeito que acharem mais conveniente. Podem, por exemplo, contratar mais professores ou simplesmente comprar mais material didático. Almoço e livros são gratuitos. Cada criança tem acesso a um laptop e um IPad. 

 A ideia de que o amplo acesso a uma educação de boa qualidade é profundamente enraizado na justiça social e política é algo que os idealizadores do sistema educacional finlandês compartilham com o pedagogo brasileiro Paulo Freire. Segundo o cientista social e intelectual finlandês, Juha Suoranta, professor para a Formação de Adultos na Universidade de Tampere e um dos fundadores do Centro Paulo Freire da Finlândia, uma educação de qualidade não pode existir sem justiça social e vice-versa. Para entender melhor essas implicações e a importância do pensamento freiriano na educação da Finlândia, Sofia N. Fait, que estreia neste número a coluna Ponte Aérea, fez uma entrevista exclusiva com Suoranta para a revista Tantas-Folhas.


Paulo Freire
Juha Suoranta, um dos fundadores do Centro Paulo Freire da Finlândia.

Você é um dos fundadores do Centro Paulo Freire da Finlândia. Qual é a visão do Centro e por que decidiu fundá-lo?

Obrigado pela pergunta. Sim, fundei o Centro em 2007 por respeito ao legado de Paulo Freire e para fazer jus ao crescente interesse na Finlândia pelo pensamento dele. Na época, fiquei surpreso ao constatar que não havia Centros Paulo Freire em nenhum dos países nórdicos. Nos anos 1970, Paulo Freire havia visitado a Suécia, país vizinho à Finlândia, onde existe até uma estátua em sua homenagem na capital, Estocolmo. Outra razão para estabelecer o Centro foi a decisão da editora finlandesa Vastapaino (”Contrapeso”) de traduzir um dos seus livros, Pedagogia do Oprimido, em 2005, o que foi de uma importância significativa. Além do mais, eu queria integrar a Finlândia mais fortemente à comunidade freiriana internacional e criar conexões mundo afora, como esta que estabelecemos através desta entrevista. Portanto, a visão do Centro é a seguinte: 

O Centro Paulo Freire-Finlândia (PFC-Finlândia) é um centro para todos os interessados em Paulo Freire e no seu legado, cujo objetivo é construir um mundo mais igualitário e justo para todos. O PFC-Finlândia estimula debates nacionais e internacionais críticos sobre educação, democracia participativa e justiça social. O PFC-Finlândia promove pesquisas, organiza eventos, colabora com professores, educadores, trabalhadores culturais, bem como com grupos educativos e agências, no desenvolvimento de projetos e em atividades de ensino – aulas, seminários e workshops – com temas variados, relacionados, por exemplo, à arte, educação comparativa, pedagogia crítica, temas de desenvolvimento, pesquisa sobre a paz, educação para a mídia e mídias sociais (Vide https://paulofreirefinland.wordpress.com/).

Existe uma tradição reconhecida da pedagogia de Freire na Finlândia? 

Bem, a resposta depende de a quem você pergunta.  Mas suponho que todo estudioso de pedagogia e talvez todo estudante ou até mesmo todo professor na Finlândia conheça o nome de Freire. Alguns leram ao menos a tradução da obra Pedagogia do Oprimido. Alguns educadores de adultos, pessoas que trabalham com jovens e comunidades usam os métodos e ideias de Freire no seu trabalho pedagógico. Eles conhecem o poder do diálogo e sabem usar a abordagem dialógica no seu trabalho pedagógico. Também sabem estimular as pessoas a refletirem sobre suas vidas e a melhorá-las, bem como a melhorarem sua posição na sociedade e no mundo.

Paulo FreireLivro do entrevistado sobre Paulo Freire e sua pedagogia.

No que se refere à pesquisa acadêmica sobre Freire, suas teorias não fazem parte do mainstream finlandês da pesquisa pedagógica. Existe uma dissertação acadêmica sobre o pensamento freiriano (datada de 2000) e meu livro recente (de 2019) sobre suas ideias. Ou seja, não muito.  Na minha opinião, o campo de pesquisa sobre a educação na Finlândia é largamente dominado por psicólogos educacionais e pela metodologia neo-positivista. Acadêmicos freirianos, que estudam em profundidade suas ideias e são intelectuais de esquerda engajados politicamente, são raros. Por sorte, alguns estudantes de Ciências Sociais e Pedagogia usam os livros de Freire em suas tarefas e teses.

O pensamento de Freire teve um impacto direto no sistema educacional finlandês?

Eu diria que não existe uma conexão direta. Quando políticos e tomadores de decisões educacionais finlandeses fizeram reformas pedagógicas significativas nos anos 1960, eles não conheciam o trabalho de Freire. As reformas educacionais finlandesas tiveram uma longa história baseada na ênfase da nação em educação. Após a Segunda Guerra Mundial, houve um grande consenso sobre a necessidade de expandir o sistema educacional geral para todas as pessoas independentemente da sua classe social. O ímpeto político para mudar o sistema se deu nos anos 60, quando os Social Democratas e o Partido do Centro alcançaram o poder. Os políticos começaram a entender a educação como um investimento na economia do Estado e no setor empresarial. Os partidos de esquerda e os sindicatos trabalhistas compreenderam a ideia da existência de um setor educacional abrangente como forma de melhorar o bem-estar e os meios de sustento dos trabalhadores e de lhes proporcionar uma chance de ascender na hierarquia social.

 

Existe uma semelhança familiar específica entre as ideias freirianas e o sistema educacional finlandês. Ambos compartilham a opinião de que o conceito de educação igual para todos é profundamente enraizado na justiça política e social. Um não existe sem o outro.

 

A reforma educacional finlandesa pôs fim ao sistema escolar de dois níveis. Antes da reforma, o sistema separava as crianças de acordo com seu status socioeconômico e habilidades acadêmicas em duas faixas. Essa separação era baseada “oficialmente” nos exames de admissão, notas escolares e na avaliação dos professores, mas na realidade o status socioeconômico das crianças era o fator decisivo. Em decorrência disso, os alunos da classe trabalhadora geralmente selecionavam a faixa mais baixa, acabando assim por se tornarem mais tarde integrantes da força de trabalho, assumindo seu lugar “natural” numa sociedade de classes. Algumas pessoas conseguiam escapar, excepcionalmente, ao seu lugar predestinado.

Portanto, as ideias de Freire não tiveram um impacto direto sobre o sistema educacional finlandês, nos anos 60, no nível político. Mas embora o pensamento de Freire não tivesse tido um impacto direto, o sistema educacional do país contém elementos que Freire apoiava: o financiamento público do sistema educacional, educação pública abrangente para todos, sem escolas particulares, um currículo básico nacional, planejamento pedagógico e administração de alta qualidade, formação universitária dos professores e a autonomia dos docentes em sala de aula. Além do mais, existe uma semelhança familiar específica entre as ideias freirianas e o sistema educacional finlandês. Ambos compartilham a opinião de que o conceito de educação igual para todos é profundamente enraizado na justiça política e social. Um não existe sem o outro.

 

Freire está presente na formação dos professores finlandeses e nos estudos educacionais gerais, ao menos em algumas universidades finlandesas, já que os estudantes conhecem a obra Pedagogia do Oprimido. ”

 

O que faz o sistema educacional finlandês ser tão bom e especial? Ele é visto como um modelo por muitos países. Ainda é assim atualmente?

Nos últimos anos tem-se tornado comum afirmar que o sistema educacional finlandês é superior a outros sistemas, com base nos resultados do PISA (o Programa da OCDE para Avaliação Internacional de Estudantes). Eu diria que devemos ser bastante cautelosos ao fazer comparações educacionais e estabelecer rankings entre os países. Não deveríamos competir na área educacional. Educação não tem nada a ver com competição, e sim com trocas recíprocas e cooperação. Contudo, estudos internacionais como o PISA podem ser um bom ponto de partida para uma conversa sobre educação e seu futuro.

A liturgia educacional padrão da Finlândia consiste hoje em dia de três crenças fundamentais. Em primeiro lugar, a educação é um caminho para cada estudante avançar na vida. Em segundo lugar, a profissão do professor é essencial e, consequentemente, apreciada. E em terceiro, o sistema escolar geral tem que ser desenvolvido e deve continuar a funcionar efetivamente.

O sistema escolar finlandês atual compreende as seguintes diretrizes: o princípio da escola local (os alunos matriculam-se nas escolas do seu bairro), financiamento público (através da taxação progressiva), valores compartilhados (na forma de um currículo básico nacional), professores como pessoas de confiança e autônomas (não há inspetores escolares), educação igual para todos (estudantes com deficiências estudam em salas de aulas ao lado de alunos sem deficiências), ausência de testes (o sistema escolar finlandês não aplica testes nacionais padronizados), a formação universitária dos professores (grau de Mestrado). O dia letivo inclui uma refeição grátis para as crianças.

A reforma mais recente refere-se à extensão da educação compulsória até os 18 anos de idade. Após completar a educação escolar geral, os estudantes recebem uma qualificação secundária superior gratuita. A reforma entrará em vigor em 1° de agosto de 2021.

 

Estou bem ciente de que populistas de extrema-direita estão tentando destruir o legado de Freire no Brasil.

 

Você poderia dar alguns exemplos da presença das ideias freirianas no discurso pedagógico e na metodologia finlandeses?

Paulo Freire não é reconhecido formalmente como uma figura fundadora do sistema educacional finlandês. Como poderia ele ser, sendo a Finlândia um país tão longe do Brasil? Mesmo assim, Freire está presente na formação dos professores finlandeses e nos estudos educacionais gerais, ao menos em algumas universidades finlandesas, já que os estudantes conhecem a obra Pedagogia do Oprimido. Durante anos, eu tentei ensinar Freire nos meus cursos e aplicar o método participativo freiriano. Muitos educadores de adultos usam Freire em suas atividades educativas e projetos, especialmente nas organizações de esquerda de formação de adultos. Eu diria que a pedagogia freiriana é parte da formação de adultos e da educação não-formal da Finlândia, mas não tanto da educação formal das escolas, embora, provavelmente, haja muitos professores em escolas finlandesas que recorrem a ideias freirianas. 

Além do mais, Freire influenciou os campos da pedagogia social, da alfabetização, teologia contextual (a teologia da libertação e a teologia revolucionária da América Latina são bem conhecidas na Finlândia) e educação artística. 

Na Finlândia, assim como no resto do mundo, precisamos de um debate global sobre Freire. Acadêmicos freirianos, ativistas, organizadores de comunidades, sindicatos trabalhistas, professores e pais têm que criar redes internacionais hoje mais do que nunca. Precisamos uns dos outros para combater as forças escuras das elites globais. Estou bem ciente de que populistas de extrema-direita estão tentando destruir o legado de Freire no Brasil. Por isso, quero enviar meu forte apoio a todas as boas pessoas que acreditam em justiça social e vivem a ética freiriana no seu dia a dia.

 

O texto é parte integrante da Revista Tantas-Folhas, edição v.2, n.1 (2021)


 

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Sofia N. Fait

Brasileira, vive há anos na Europa. Museóloga, trabalha atualmente como guia de turismo em Copenhague, Dinamarca. Acompanha grupos em viagens organizadas para vários países do mundo. Colabora com publicações europeias e, no Brasil, com o site e revista Tantas-Folhas.

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