Aroldo Pereira, Flausina Márcia da Silva, Simone Andrade Neves | ABC: Poetas BHZ
Tanto o poeta Aroldo Pereira quanto as poetas Flausina Márcia da Silva e Simone Andrade Neves, que participam da edição de dezembro da coluna ABC: Poetas BHZ, têm livros publicados e se dedicam com intensidade à poesia. Seus versos e depoimentos demonstram a vivência entranhada do “sentimento do mundo” a que se referiu Carlos Drummond de Andrade. Leia os poemas e busque seus livros no mundo real ou no virtual. Diante do caos sanitário e político em que estamos mergulhados no Brasil, a poesia se faz necessária tal qual uma boia de salvação em alto-mar.
Explicação necessária para poetas (clique aqui)
Aroldo Pereira
Aroldo Pereira começou a escrever nos anos 1970, quando fazia letras de música para a banda Ataq Cardíaco, de punk rock, na qual também era vocalista. Para ele, escrever é uma forma de se traduzir enquanto humanista que luta contra a desigualdade social e os preconceitos de todos os tipos que ainda campeiam pelo mundo. Afirma que as artes visuais, a performance, a dança, o cinema e a música o influenciam mais do que a literatura e a própria poesia, embora leia e admire muitos poetas e escritores. Sobre seu processo de criação, ele diz: “Existem vários formatos nessa caminhada. Posso demorar muito tempo na criação de um poema. Posso ter primeiro as imagens em minha cabeça, vindo, incomodando, indo e voltando, para depois traduzir na linguagem escrita. Em outros momentos, o poema vem de uma vez só, e eu apenas paro para burilar, encaixar intenções. Penso que minha escrita é um poema único, que vem sendo desenvolvido desde a infância. É provável que tudo que eu ainda venha a escrever, já esteja escrito em meu sangue. ”
não inverno
verão
no meu coração
pedaladas poéticas
nasci & penso q vivo
muito transtorno
nada q nos dê
garantia
não sabemos porque
conseguem fazer tudo
tão ruim
o país não se garante
a vida não se garante
nós não nos garantimos
tudo tão incerto
vamos pedalando
por esse deserto
a gosto
jiló
cebola
tomate
cenoura
alface / agrião
banana
melão
pêra / goiaba
pequi / faisão
para refestelar
arroz
com feijão
Aroldo Pereira é integrante do Grupo de Literatura e Teatro Transa Poética. Foi vocalista da banda punk Ataq Cardíaco. Em 1986, com os poetas Zacarias Mercau, Gabriel Cardoso, Osmauro Lúcio Santos, Mirna Mendes, Renilson Durães, Helena Soares e Regina Telma, criou em Montes Claros o Festival de Arte Contemporânea Psiu Poético, que ocorre em Belo Horizonte com o nome de Beagá Psiu Poético. Publicou os livros “Cinema bumerangue”, “Poetrikza” e “Parangolivro”. Em 2016, ao lado de Luis Turiba e Wagner Merije, organizou a antologia “Trinta Anos-Luz – Poetas celebram 30 anos de Psiu Poético”.
Flausina Márcia da Silva
Para Flausina Márcia da Silva, escrever começa com o prazer de escolher as melhores palavras para a redação do Para Casa, para o texto de respostas das provas, para cartas e bilhetes. Em 1972, um ex-namorado guardou carta em que ela desenhou e coloriu balões nos quais escreveu frases criadas para impressionar: “Sagrado é o que sobra do segredo” foi uma delas. Sete anos depois, escreveu seus primeiros poemas, depois de rasgar dezenas deles. Lê romances e poetas, em especial, Fernando Pessoa, desde os 15 anos. Gosta muito de ensaios críticos. Os livros que a fizeram rir e/ou chorar influenciaram sua visão de mundo e da literatura. Para ela, “cada poema tem seu jeito de nascer, ora é ideia, ora é assunto. Uma vez é projeto, outra é abstração. Lá, onde germina, há sempre uma cena, ou paisagem, do cotidiano, ou de sonho, de uma pintura, ou de um filme. Há a palavra cheia de vida. Parar tudo, pegar papel e caneta é o principal”. Ela fala sobre os poemas que enviou para esta coluna: “Os dois primeiros poemas foram publicados no Facebook. O poema que cita GH foi publicado em meu livro ‘Poemas Declives’: são três poemas que, sob o título ‘Clarices’, falavam de personagens da obra de Clarice Lispector. Coloco um deles aqui para lembrar o centenário de nascimento da autora. ”
QUE
Que poetas sejam céticos
felizes, infelizes, alegres
ou tristes, solitários
jamais sem entusiasmo
jamais jamais jamais
Sejam pobres, ricos
guerreiros, ou não
cheios de dores, clamores
sem entusiasmo jamais
nunca, nunca, jamais
Podem ser sentimentais
não demais, podem não,
faz falhar a altivez
entusiasmo não pode faltar
jamais, nunca jamais, nunca
Se for caso de extinção
irão captar fragmentáceos
a farfalhar entusiasmo
A que chamarão poesia.
(Julho, 2020)
Olímpicas pessoas
Comovem o chão
Abrigo único do
Despossuir.
Cama de rua é
Lugar de tudo
Errado dar
Peço leite, pois
Usam cartão
Peço nada, pois
Sou invisível
Estou aqui
Fora de prumo
De prêmio, da
Participação.
Há um mundo
Do meu ninguém
Há o chão!
(Dezembro, 2016)
No meio do alfabeto
os esquecidos G e H
recomendam paixão
segundo Clarice
Na parede branca
onde é certo executar
os insetos
Paixão ainda, porque
desesperamos sem asco
Rabiscamos pelos,
asas envernizadas
bocas ansiosas
mãos muito firmes
Para dizer do nada
vivemos e somos
um pouco menos
um pouco mais
divinos.
(2014)
Flausina Márcia da Silva nasceu em Cataguases, Minas Gerais. É autora de quatro livros de poemas: “Vaga – Lume” (2001), “Sua Casa Minha Cruz” (2003), “Teófilo Ottoni” (2009) e “Poemas Declives” (2014). O Suplemento Literário de Minas Gerais, a Revista Mininas, a Antologia Terças Poéticas, a Revista CULT e o Caderno Pensar, do jornal Estado de Minas, publicaram poemas de sua autoria. A Antologia “Escritoras de ontem e de hoje”, lançada em 2012, traz um artigo sobre sua poesia. Participou da coletânea “Entrelinhas, Entremontes – Versos Contemporâneos Mineiros”, organizada durante anos por Marcelo Dolabela, Vera Casa Nova e Kaio Carmona, e lançada em 2020. A revista eletrônica “Chicos”, editada por escritores de Cataguases, publica seus poemas desde 2009.
Simone Andrade Neves
Simone Andrade Neves escreve desde os oito anos. Lançou seu primeiro livro em 1994. Passou 20 anos sem publicar. Nesse intervalo, mergulhou fundo na literatura. Leu de tudo: poesia, prosa, ensaios, técnicas de arquitetura, livros sobre bichos, em especial pássaros, antropologia, arqueologia, culinária. Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Manuel Bandeira e João Cabral foram as primeiras influências. Na adolescência, descobriu o hai-kai, as canções de Secos e Molhados, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, as letras de Fernando Brant. Na sequência, leu Camões, Mário de Sá-Carneiro, Chacal, Nuvem Cigana e os poetas marginais, Gregório de Matos, os irmãos Campos, Ferreira Gullar, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Guimarães Rosa, Câmara Cascudo, Victor Hugo, Walter Benjamin, Heidegger, Roland Barthes, as correspondências de Mário de Andrade com Drummond. Interessou-se pelos poemas das portuguesas Fiama Hasse Pais Brandão e Sophia de Melo Breyner Andressen. Bernie Krause e seu ‘A orquestra da natureza’, e Cláudio Manoel da Costa, seu conjurado dileto, foram leituras marcantes. Enfim, ela diz: “Leio tudo o que passa pela minha frente e desperta interesse. Vivo pesquisando, renovando os meus encantos em territórios muito diversos. Tudo influencia a minha escrita”. Em seu livro recente, ressalta: “Visitei um tema inédito na minha escrita: a fantástica e incondicionada entrega ao amor. E perceba que ‘Terrário’ une duas palavras: é minha poesia em vazante. ”
Depois de sonhar com Paul Klee
Basta
o pessegueiro de frutos brancos.
E assim que termina a fonte de pedra
um bananal com três cachos contados verdes.
Nos fundos vista para a floresta
E na frente um vale, a pequena cachoeira
na forma da água em fila.
Viuvez
Com as pedras da antiga casa
nova casa construída
no retido do quintal
de jambeiro a limoeiro.
Nalguns dias do ano
enxerga nas jabuticabas
olhos do não mais ser.
Cuitelinho
Formou no ar
a divisa da casa.
Do não saber saída
preso por uma noite inteira
o silente beija-flor
não livrou o bico.
Amanheceu espraiado rendido.
Só então visto,
sem voo.
Simone Andrade Neves nasceu em Belo Horizonte. Publicou os livros “O coração como engrenagem” (1994), “Corpos em Marcha”, no Brasil pela Editora Scriptum (2015) e na Itália pela Edizioni Kolibris (2020), e “Terrário”, Ed. Demônio Negro, (2020). É autora dos poemas de “Missa do Envio – Bandeira do Divino”, parceria com o músico Chiquinho de Assis, Ed. Casa Impressora de Almería, 2017.
Para visualizar a 1º edição da coluna ABC: Poetas BHZ | Adri Aleixo, Karine Bassi, Wir Caetano (clique aqui)
Paulo Vilara
Graduado em História, jornalista, autor dos livros Manhãs com pássaros – Exercícios de síntese (2015); Jazz! Interpretações – Pequenas histórias de fúria, dor e alegria (2011); Palavras Musicais – entrevistas (2006); Congresso Internacional da Bicharada (1996). Tem textos publicados nos livros Os filmes que sonhamos (2011); Histórias da Rua da Bahia e da Cantina do Lucas (2002); Presença do CEC – 50 anos de cinema em Belo Horizonte (2001) Cinema em palavras (1995). Dirigiu documentários: Mil sons geniais (2004) ; Guignard - A educação do olhar (1996); Cataguases - Um olhar na modernidade brasileira (1988); Dona Izabel - A magia da criação (1985); Carlos Chagas. O passado presente (1981). Ver mais Bibliografia Paulo Vilara. Foto: Pedro Kirilos.
Que delícia de Revista! Longa vida a Tantas Folhas!
Sou grato a você, Dagmar. Pelo comentário e por seu apoio ao trabalho da equipe de Tantas-Folhas.
Abraço. Paulo
Amei parabéns a alegria e o coração transborda de gratidão !